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sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Poemas curtos - Autoria própria

I
Foi perseverante
De fracasso em fracasso
Fracassou de todas as formas

II
Perdi o poema
Numa estiagem
De metáforas

III
Se eu ressuscitasse o Mar Morto
Pediria às suas águas
A paixão que se afogou em mágoas

quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

As rosas - Machado de Assis

Rosas que desabrochais,
Como os primeiro amores,
Aos suaves resplendores
Matinais;

Em vão ostentais, em vão,
A vossa graça suprema;
De pouco valeç é o diadema
Da ilusão.

Em vão encheis de aroma o ar da tarde;
Em vão abris o seio úmido e fresco
Do sol nascente aos beijos amorosos;
Em vão ornais a fronte à meiga virgem;
EM vão, como penhor de puro afeto,
como um elo das almas,
Passas do seio amante ao seio amante;
Lá bate a hora infausta
Em que e força morrer; as folhas lindas
As graças e o perfume,
Rosas, que sois então? - Restos perdidos,
Folhas mortas que o tempo esquece, e espalha
Brisa do inverno ou mão indiferente.

Tal é o vosso destino,
Ó filhas da natureza;
Em que vos pese a beleza,
Pereceis;
Mas, não...Se a mão de um poeta
Vos cultiva agora, ó rosas,
Mais vivas, mais jubilosas,
Floresceis.

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

7 de agosto - Autoria própria

Meu aniversário chegou
Estava tão indiferente
Que nem o reconheci

Idade que se foi
E na qual não fui
Quis a quimera
Fiquei à espera
Do que devia
Ter vivido e feito

Meus fantasmas estão aqui
Olharam
Sussurraram
Banquetearam
Engordaram
Riram
Troçaram
Enganaram
Esconderam-se
Voltaram
Fortes e persistentes
Com fome de bolo

O calendário me enganou!
E trouxe-me outro aniversário
Sem que eu tivesse
Desembrulhado o anterior

segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

A rua dos cataventos - Mário Quintana

Da vez primeira em que me assassinaram,
Perdi um jeito de sorrir que eu tinha.
Depois, a cada vez que me mataram,
Foram levando qualquer coisa minha.

Hoje, dos meu cadáveres eu sou
O mais desnudo, o que não tem mais nada.
Arde um toco de Vela amarelada,
Como único bem que me ficou.

Vinde! Corvos, chacais, ladrões de estrada!
Pois dessa mão avaramente adunca
Não haverão de arracar a luz sagrada!

Aves da noite! Asas do horror! Voejai!
Que a luz trêmula e triste como um ai,
A luz de um morto não se apaga nunca!

domingo, 25 de dezembro de 2011

Expulsão do paraíso - Autoria própria

Adão e Eva viviam nos Jardins do Éden
Viam Deus, verdadeira e única fortuna
Na afortunada vida, uma coluna
Somente uma abstinência, um só desdém

“Não provar uma fruta, nada além
Sem outra proibição, sem mais lacuna
Todo o mais, e nada mais há que os puna”
Tendo tudo, quiseram o porém

A serpente que tenta o ser temente
Dourou a tentação da fruta proibida
Curvaram-se ambos a esse mau juízo

Sentiram na carne o que a carne sente
A dor no parto, a doença, a acre ferida
E a nudez na expulsão do Paraíso

sábado, 24 de dezembro de 2011

Se eu fosse um padre - Mário Quintana

Se eu fosse um padre, eu, nos meus sermões,
não falaria em Deus nem no Pecado
- muito menos no Anjo Rebelado
e os encantos das suas seduções,
não citaria santos e profetas:
nada das suas celestiais promessas
ou das suas terríveis maldições…
Se eu fosse um padre eu citaria os poetas,
Rezaria seus versos, os mais belos,
desses que desde a infância me embalaram
e quem me dera que alguns fossem meus!
Porque a poesia purifica a alma
… a um belo poema – ainda que de Deus se aparte -
um belo poema sempre leva a Deus!

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

O nada - Autoria própria

Nunca há, nem nunca houve
Todos temem onde não há
No vácuo, no oco, busca-se
Ao menos
O som mouco
Para que haja
Algo que não há
Nem em vaia
Nem em aplauso
Nem em verso
Nem em prosa
É o inverso
Do que é
E do que não será

Porém,
Tendo sido
O que não foi
Deixou de ser
O que não era

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Gesso e bronze - Castro Alves

FOI CANOVA ou Davi... Um mestre, um escultor,
Duas estátuas fez simbolizando o amor...


Uma — pálida e fria, inda amassada em gesso
No canto da oficina ensaio sem apreço!...
Outra — prodígio d'arte, arrojo peregrino,
Encarnação de luz em bronze fiorentino!...


Uma noite, porém, um raio, o acaso... um nada
O incêndio arremessando à tenda profanada...
No vermelho estendal das cinzas do brasido
Viu-se o esboço de pé!... e o bronze derretido!...


Senhora, Deus também às vezes é escultor,
E gosta de esculpir nos corações o amor...
De argila ou de metal, de barro ou de alabastro
Com o limo com que faz a escuridão e o astro


Mas quando o acaso... um gesto... um riso leviano
Ateia a flama vil de um zelo ardente, insano...
Sabeis o que se dá?
— O amor de gesso medra
De lodo que era há pouco enrija faz-se pedra


................................................


Mas da lava infernal o beijo libertino
Funde a estátua do amor de bronze florentino!!

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Nascimento de um poema - Autoria própria

Papel
Brancura
Inquietação

Caneta e vontade
Desejo e
Paixão

Palavras
Encaixe
Idéias surgindo

O poema conduz
O poeta
Que lhe faz

Então
De repente
O poeta pensou
Que estava
Na lua

Mas a lua já fugira
Deixou-lhe o poema

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

O "Adeus" de Teresa - Castro Alves

A vez primeira que eu fitei Teresa,
Como as plantas que arrasta a correnteza,
A valsa nos levou nos giros seus
E amamos juntos E depois na sala
"Adeus" eu disse-lhe a tremer co'a fala

E ela, corando, murmurou-me: "adeus."

Uma noite entreabriu-se um reposteiro. . .
E da alcova saía um cavaleiro
Inda beijando uma mulher sem véus
Era eu Era a pálida Teresa!
"Adeus" lhe disse conservando-a presa

E ela entre beijos murmurou-me: "adeus!"

Passaram tempos sec'los de delírio
Prazeres divinais gozos do Empíreo
... Mas um dia volvi aos lares meus.
Partindo eu disse - "Voltarei! descansa!. . . "
Ela, chorando mais que uma criança,

Ela em soluços murmurou-me: "adeus!"

Quando voltei era o palácio em festa!
E a voz d'Ela e de um homem lá na orquestra
Preenchiam de amor o azul dos céus.
Entrei! Ela me olhou branca surpresa!
Foi a última vez que eu vi Teresa!

E ela arquejando murmurou-me: "adeus!"

domingo, 18 de dezembro de 2011

Beleza - Menotti del Picchia

A beleza das coisas te devasta
como o sol que fascina mas te cega.
Delas contundo a luminosa entrega
nunca se dá, melhor, nunca te basta.

E a imensa paz que para além te arrasta
quanto mais se te esquiva ou te renega...
Paz tão do alto e paz dessa macega
que nos campos esplende à luz mais casta.


A beleza te fere e todavia
afaga, uma emoção (sempre a primeira e nunca
repetida) que conduz


o teu deslumbramento para um dia
à noite misturado, na clareira
em que te sentes noite em plena luz.

sábado, 17 de dezembro de 2011

A palavra - Autoria própria

A palavra insere
E também fere.

A palavra encanta
E também desmancha.

A palavra faz andar
E abrevia o parar.

Cuidado!
Palavras perdidas
Devem ser
Devolvidas ao dono

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Noite - Menotti Del Picchia

As casas fecham as pálpebras das janelas e dormem.
Todos os rumores são postos em surdina,
todas as luzes se apagam.

Há um grande aparato de câmara funerária
na paisagem do mundo.


Os homens ficam rígidos,
tomam a posição horizontal
e ensaiam o próprio cadáver.


Cada leito é a maquete de um túmulo.
Cada sono em ensaio de morte.


No cemitério da treva
tudo morre provisoriamente.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Soneto da tristeza

A réptil tristeza, sutil na bruma
Da alegria fez sua miragem roubada
E em todas as preces peço que suma
Mas nunca some esta maldita toada

Macabro canto ao peito dilacera
Retire-se já, perverso alquimista!
Pão cuspido que a vida vitupera
Desta rede foge toda conquista

Ah, se congelasse um instante indene!
Porém, nesta dor, não há quem ordene
Pois te confidencio vida cigana

Eu muito invejaria o riso perene
Mas na frente da tristeza tirana
Ele se rendeu no sino solene

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Amanhã - Gonçalves Dias

Amanhã! — é o sol que desponta,
É a aurora de róseo fulgor,
É a pomba que passa e que estampa
Leve sombra de um lago na flor.


Amanhã! — é a folha orvalhada,
É a rola a carpir-se de dor,
É da brisa o suspiro, — é das aves
Ledo canto, — é da fonte — o frescor.


Amanhã! — são acasos da sorte;
O queixume, o prazer, o amor,
O triunfo que a vida nos doura,
Ou a morte de baço palor.


Amanhã! — é o vento que ruge,
A procela d'horrendo fragor,
É a vida no peito mirrada,
Mal soltando um alento de dor.


Amanhã! — é a folha pendida.
É a fonte sem meigo frescor,
São as aves sem canto, são bosques
Já sem folhas, e o sol sem calor.


Amanhã! — são acasos da sorte!
É a vida no seu amargor,
Amanhã! — o triunfo, ou a morte;
Amanhã! — o prazer, ou a dor!


Amanhã! — o que val', se hoje existes!
Folga e ri de prazer e de amor;
Hoje o dia nos cabe e nos toca,
De amanhã Deus somente é Senhor!

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Maremoto - Autoria própria

Ao desabar do inverno noturno
O eflúvio da angústia soa rente
Gerindo sentimento soturno
Grande tormento o peito sente

Um grito emudecido explode
Dentro do deserto em que convivo
Brota então a solitária ode
Maldito fruto deste cultivo

Sóbrio, vejo abrigo no lirismo
Meu eterno aliado renitente
Perdido, mal disfarço o cinismo
Que a tinta do papel não desmente

Em vão, busco bem-aventurança
Escavando palavras fugidias
Resta-me, tão-só, vaga lembrança
De minha infância de tardes vadias

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Recordação - Gonçalves Dias

Quando em meu peito as aflições rebentam
Eivadas de sofrer acerbo e duro;
Quando a desgraça o coração me arrocha
Em círculos de ferro, com tal força,
Que dele o sangue em borbotões golfeja;
Quando minha alma de sofrer cansada,
Bem que afeita a sofrer, sequer não pode
Clamar: Senhor, piedade; — e que os meus olhos
Rebeldes, uma lágrima não vertem
Do mar d'angústias que meu peito oprime:

Volvo aos instantes de ventura, e penso
Que a sós contigo, em prática serena,
Melhor futuro me augurava, as doces
Palavras tuas, sôfregos, atentos
Sorvendo meus ouvidos, — nos teus olhos
Lendo os meus olhos tanto amor, que a vida
Longa, bem longa, não bastara ainda
por que de os ver me saciasse!... O pranto
Então dos olhos meus corre espontâneo,
Que não mais te verei. — Em tal pensando
De martírios calar sinto em meu peito
Tão grande plenitude, que a minha alma
Sente amargo prazer de quanto sofre.

domingo, 11 de dezembro de 2011

Vento noturno - Autoria própria

Ao eco do vento noturno
Sólida se torna a tristeza
E o medo invade o aluno
Trilhando suave aspereza

Vingue-se o sangue do justo
Impondo ao mau liberdade
Erga-se na praça um busto
Dê-se glória a falsa verdade

Harmonia de tudo destoa
Escapa o pilar da construção
Acompanha a linda garoa
A flor triste da destruição

Labutando bela palavra
Fica olvidada a mensagem
A dor no peito forte lavra
Anseio por última viagem

sábado, 10 de dezembro de 2011

Segundo movimento - Bruno Tolentino

Mas vem o amor, o amor que faz tão doce
o travo em que circula à flor do instante,
e entre resíduos vai como se fosse
suficiente, plácido e constante...

Mas se é amor é muito mais cortante
e em lâmina tão leve disfarçou-se
que por melhor alar seu golpe pôs
cintilações de ganho em cada instante.

E a alma se insurge, cobra a amor que abrande
seu ginete malsão tonto de posse,
esse peso de corpo que a alma torce

e não doma, esse breve, esse bastante
soluço da vontade no imperfeito —
mas a alma cede, a alma sucumbe ao peito...

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Maturidade - Autoria própria

Um dia, de uma criança se fez um adulto
Em sua frente o desafiava um mundo
Sua rua cresceu bem para além de seu bairro
As flores não mais estavam em seu jarro
O mar raso correu para lá no fundo
A reza que ouvia parecia outro culto

Só então, percebeu o fugir da magia
Deram-lhe em troca uma tal filosofia
Servida em conjunto com outra poesia
Mas o que de verdade se procurava
Depois do mudar brusco da sintonia?
Só o sol de outrora, que não mais voltaria.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Noturno - Bruno Tolentino

Não sou o que te quer. Sou o que desce
a ti, veia por veia, e se derrama
à cata de si mesmo e do que é chama
e em cinza se reúne e se arrefece.
Anoitece contigo. E me anoitece
o lume do que é findo e me reclama.
Abro as mãos no obscuro. Toco a trama
que lacuna a lacuna amor se tece.
Repousa em ti o espanto que em mim dói,
noturno. E te revolvo. E estás pousada,
pomba de pura sombra que me rói.
E mordo teu silêncio corrosivo,
chupo o que flui, amor, sei que estou vivo
e sou teu salto em mim, suspenso em nada.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

O pescador - autoria própria

O sol, o céu azul, um dia sem norte
O pescador, um barquinho e a isca
O anzol que desce na água quer sorte
Quando mergulha fundo arrisca
O destino que está designado
Na disputa do pescador
Com a vítima, em um dia azulado
Em que um repousa, e outro tem dor

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Escárnio perfumado - Cruz e Souza

Quando no enleio
De receber umas notícias tuas,
Vou-me ao correio,
Que é lá no fim da mais cruel das ruas,

Vendo tão fartas,
D'uma fartura que ninguém colige,
As mãos dos outros, de jornais e cartas
E as minhas, nuas - isso dói, me aflige...

E em tom de mofa,
Julgo que tudo me escarnece, apoda,
Ri, me apostrofa,

Pois fico só e cabisbaixo, inerme,
A noite andar-me na cabeça, em roda,
Mais humilhado que um mendigo, um verme...

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

O palhaço - autoria própria

Por detrás desta cara pintada
Há uma persona
Que chora
Enquanto ri

E na orgia de risos,
Ele é o bobo da ribalta

É quem redime
Nossas humilhações
E nosso passado

A alegria das crianças
Atravessa um ducto de tristezas
E deságua num rosto
Já pintado
Para esconder o esgoto

E quando chegado o seu momento
Abrem alas todas as feras
Saem o leão e o tigre
Com o fogo que lhes é fiel

E no picadeiro apenas resta
O palhaço, que sai de si
Para mergulhar
Na alegria alheia

domingo, 4 de dezembro de 2011

Anda-me a alma - Cruz e Souza

Anda-me a alma inteira de tal sorte,
Meus gozos, meu pesar, nos dela unidos
Que os dela são também os meus sentidos,
Que o meu é também dela o mesmo norte.

Unidos corpo a corpo -- um elo forte
Nos prende eternamente -- e nos ouvidos
Sentimos sons iguais. Vemos floridos
Os sons do porvir, em azul coorte...

O mesmo diapasão musicaliza
Os seres de nos dois -- um sol irisa
Os nossos corações -- dá luz, constela...

Anda esta vida, espiritualizada
Por este amor -- anda-me assim -- ligada
A minha sombra com a sombra dela.

sábado, 3 de dezembro de 2011

Inspiração - Autoria própria

Só com o verso
É que converso
Com instrumento
Antes disperso
Com sentimento
Lá bem submerso.
E fora inverso!

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Que segredo o papel me revelará hoje?
Qual lembrança reviverá?
Como será a minha Mona Lisa?

No baú, há ouro ou pedra?
Escuto Shakespeare?
Ou Bandeira?
Será que alguém vai ouvir?
Tenho algo a dizer

A poesia tem duas casas.
Mora nos livros.
E é auscultada no coração.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Rosa de Hiroshima - Vinicius de Moraes

Pensem nas crianças
Mudas telepáticas
Pensem nas meninas
Cegas inexatas
Pensem nas mulheres
Rotas alteradas
Pensem nas feridas
Como rosas cálidas
Mas, oh, não se esqueçam
Da rosa da rosa
Da rosa de Hiroshima
A rosa hereditária
A rosa radioativa
Estúpida e inválida
A rosa com cirrose
A anti-rosa atômica
Sem cor sem perfume
Sem rosa, sem nada

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Fé - Autoria própria


Ter fé na fé
Ou ter fé na não fé
Não ter fé na fé nem na não fé
Tudo é uma só questão
Questão
De fé

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Soneto da Separação – Vinícius de Moraes

De repente do riso fez-se o pranto
Silencioso e branco como a bruma
E das bocas unidas fez-se a espuma
E das mãos espalmadas fez-se o espanto.

De repente da calma fez-se o vento
Que dos olhos desfez a última chama
E da paixão fez-se o pressentimento
E do momento imóvel fez-se o drama.

De repente, não mais que de repente
Fez-se de triste o que se fez amante
E de sozinho o que se fez contente.

Fez-se do amigo próximo o distante
Fez-se da vida uma aventura errante
De repente, não mais que de repente.

terça-feira, 29 de novembro de 2011

O malabarista - Autoria própria

Sustentas-te entre dois perigos
Esquivando-te de duas intrigas
E da disputa entre teus inimigos
Resulta o espaço que ocupas

A distância que te afasta do chão
Abriga o encantamento de tenras idades
No permanente desafio à perversidade
Da queda
Relembras o pecado original
Que afastou Adão do Paraíso

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Retrato de escritor - João Cabral de Melo Neto

Insolúvel: na água quente e na fria;
nas de furar a pedra ou nas langues;
nas águas lavadeiras; até nos alcoóis
que dissolvem o desdém mais diamante.
Insolúvel: por muito o dissolvente;
igual, nas gotas dum pranto ao lado,
e nas águas do banho que o submerge,
em beatitude, e de que emerge ingasto.

Solúvel: em toda tinta de escrever,
o mais simples de seus dissolventes;
primeiramente, na da caneta-tinteiro
com que ele se escreve dele, sempre
(manuscrito, até em carta se abranda,
em pedra-sabão, seu diamante primo);
solúvel, mais tarde ele se passa a limpo
o que ele se escreveu da dor indonésia
lida no Rio, num telegrama do Egito
(datiloscrito, já se acaramela muito
seu diamante em pessoa, pré-escrito).

Solúvel, todo: na tinta, embora sólida,
da rotativa, manando seu auto-escrito
(impresso, e tanto em livro-cisterna
ou jornal-rio, seu diamante é líquido).

domingo, 27 de novembro de 2011

Cama - Autoria própria

Gosto de lhe ver
Coberta de lençóis
Despida de maquiagens
E máscaras

Gosto de lhe ver desprevenida
Solta como aurora na praia
Riso de pluma descerrando a face

Gosto quando você não me pergunta
O que já sabe

Gosto quando você me pergunta
O que já sabe

Gosto quando seus olhos
Desmentem sua boca

Gosto de quando você parte
Passos com pressa de ficar
E zangamento de menina

sábado, 26 de novembro de 2011

Tecendo a manhã - João Cabral de Melo Neto

1

Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.

2

E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

A arquitetura de uma mentira (o poema sem lirismo, ou o poema-prosa) - Autoria própria

Capture o que é mais íntimo no seu interlocutor
O objeto pelo qual ele daria (ou perderia) o mundo
Coloque-o ao seu alcance

Acrescente escamas de verossimilhança
Palavras e gestos grandiloquentes
E um mise en scène de indignação, se houver poeira de desconfiança

Enrondillhe-o com seus mais profundos propósitos ou medos
Deixe-os à vista na mesa

A estória não precisa ser bonita
Precisa dos fragmentos da verdade
Ligeiramente reordenados

Acrescente a isto tudo a convicção em toda a sua amplidão
Acredite no que você não acredita
Credite isto tudo a um bem maior

Pronto!

Você já possui uma mentira para oferecer a quem quer que seja

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Os sapos - Manuel Bandeira

Enfunando os papos,
Saem da penumbra,
Aos pulos, os sapos.
A luz os deslumbra.


Em ronco que aterra,
Berra o sapo-boi:
— "Meu pai foi à guerra!"
— "Não foi!" — "Foi!" — "Não foi!".


O sapo-tanoeiro,
Parnasiano aguado,
Diz: — "Meu cancioneiro
É bem martelado.


Vede como primo
Em comer os hiatos!
Que arte! E nunca rimo
Os termos cognatos!


O meu verso é bom
Frumento sem joio
Faço rimas com
Consoantes de apoio.


Vai por cinqüenta anos
Que lhes dei a norma:
Reduzi sem danos
A formas a forma.


Clame a saparia
Em críticas céticas:
Não há mais poesia,
Mas há artes poéticas . . ."


Urra o sapo-boi:
— "Meu pai foi rei" — "Foi!"
— "Não foi!" — "Foi!" — "Não foi!"


Brada em um assomo
O sapo-tanoeiro:
— "A grande arte é como
Lavor de joalheiro.


Ou bem de estatuário.
Tudo quanto é belo,
Tudo quanto é vário,
Canta no martelo."


Outros, sapos-pipas
(Um mal em si cabe),
Falam pelas tripas:
— "Sei!" — "Não sabe!" — "Sabe!".


Longe dessa grita,
Lá onde mais densa
A noite infinita
Verte a sombra imensa;


Lá, fugindo ao mundo,
Sem glória, sem fé,
No perau profundo
E solitário, é


Que soluças tu,
Transido de frio,
Sapo-cururu
Da beira do rio

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Poema I - Autoria própria

Nem tudo o que é preciso
É possível

Nem tudo o que é possível
É querido

A rima
Cifrada

O verso
No anverso
Do poema
Perdido

Palavras
Paisagem

Procura
O poeta
Perder
O que achou

Gramática
Prisão

O verso
No cio
Flerta
A poesia
Que se despiu
Da Rima
Mas não
Ficou prosa

Inspiração e
Poesia

Fragmentos de
Realidade
Refletidos
Na miragem

Confessionário
Verso

Envelheci
Envileci
Na bigorna
E no martelo
Forjo
O cristal

Poeta
Engodo

Perdeu-se
No caminho
E lá
Para sempre
Foi deixado

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Pneumotórax – Manuel Bandeira

Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos.
A vida inteira que podia ter sido e que não foi.
Tosse, tosse, tosse.


Mandou chamar o médico:
— Diga trinta e três.
— Trinta e três . . . trinta e três . . . trinta e três . . .
— Respire.

— O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado.
— Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?
— Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

A desconhecida - Autoria própria

O beijo antecipou-se
À chegada do nome
As línguas se conheceram
Antes de serem conhecidos
Seus idiomas

Há um instinto
Que instila
Insinua-se
Pelas mãos
Censuradas

Conversam os seus poros
Miscigenam-se seus sabores
Confundem-se os suores
E corpos

Súbito, escapam palavras
O prefácio atrasado
Do romance rasurado
Iniciado e acabado.
Tornou-se
Revista semanal.

domingo, 20 de novembro de 2011

Vejo a aurora surgir - Augusto Frederico Schmidt

Vejo a aurora surgir nesses teus olhos
Ainda há pouco tão tristes e sombrios.
Vejo as primeiras luzes matutinas
Nascendo, aos poucos, nos teus grandes olhos!



Vejo a deusa triunfal chegar serena,
Vejo o seu corpo nu, radioso e claro,
Vir crescendo em beleza e suavidade
Nas longínquas paragens dos teus olhos.



E estendo as minhas mãos tristes e pobres
Para tocar a imagem misteriosa
Desse dia que vem, em ti, raiando;



E sinto as minhas mãos, ó doce amada,
Molhadas pelo orvalho que roreja
Do teu olhar de estranhas claridades!

sábado, 19 de novembro de 2011

O beija-flor - Autoria própria

Havia um poema bloqueado
Tal qual artéria entupida
Ele ali estava, mas não vinha
Para o papel

E o poeta pede ajuda
Consulta o dicionário
Rilke e Camões
Sócrates e Homero

Eis que chega um beija-flor
Com uma rosa em seu bico
E, no seu desprendimento,
Empresta a rosa ao poema

O beija-flor, quando se vai
Arrasta em suas asas
A mesquinhez que bloqueava
A inspiração do poeta

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Poema - Augusto Frederico Schmidt

Encontraremos o amor depois que um de nós abandonar
os brinquedos.
Encontraremos o amor depois que nos tivermos despedido
E caminharmos separados pelos caminhos.

Então ele passará por nós,
E terá a figura de um velho trôpego,
Ou mesmo de um cão abandonado,

O amor é uma iluminação, e está em nós, contido em nós,
E são sinais indiferentes e próximos que os acordam do
seu sono subitamente.

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Polir - Autoria própria

Polir a palavra
Para que o pólen da poesia
Floresça num enigma
Desnudo pela primeira vez
Com suas nervuras expostas
Multifacetadas perspectivas
Sem ponto final

Polir o verso
Para que a rima baile
No ritmo com ou sem
Metro

Polir o poema
Para conduzir a palavra à província
Que trespassa seu significado
Passando estranhamento
E encanto

Polir o poeta
Para que ele se aproxime
Do indizível
Assistindo a gestação
De uma
Descoberta

Timidez - Cecília Meirelles

Basta-me um pequeno gesto,
feito de longe e de leve,
para que venhas comigo
e eu para sempre te leve...


— mas só esse eu não farei.


Uma palavra caída
das montanhas dos instantes
desmancha todos os mares
e une as terras mais distantes...


— palavra que não direi.


Para que tu me adivinhes,
entre os ventos taciturnos,
apago meus pensamentos,
ponho vestidos noturnos,


— que amargamente inventei.


E, enquanto não me descobres,
os mundos vão navegando
nos ares certos do tempo,
até não se sabe quando...


— e um dia me acabarei.

terça-feira, 15 de novembro de 2011

Por que lhe quero tanto se não lhe quero - Autoria própria

Por que lhe quero tanto se não lhe quero
Desde a última vez que me decepcionou
Se decepcionado estou, e sou sincero
Não quereria querer quem me abandonou

Por que lhe espero tanto se não lhe espero
Se quando me esperava você não ficou
Quando cheguei, restou-me o mero
Sabor de quem sabia o que provocou

Por que a esperança no desespero
Se de tanto aguardar tal efeméride
Nada mais quero, nada mais espero

Por que você me olha se não me vê?
Para me manter como um satélite
Que orbita em sua volta sem saber o porquê

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

4o. Motivo da rosa - Cecília Meirelles

Não te aflijas com a pétala que voa:
também é ser, deixar de ser assim.


Rosas verá, só de cinzas franzida,
mortas, intactas pelo teu jardim.


Eu deixo aroma até nos meus espinhos
ao longe, o vento vai falando de mim.


E por perder-me é que vão me lembrando,
por desfolhar-me é que não tenho fim.

domingo, 13 de novembro de 2011

Livro "A triste história do Ìndio Juca" - Autoria própria - Capítulo X - Completo

A vergonha dormia numa mansarda
Dormia mas respirava, só esperando
Tarda e tanto maior tanto era mais tarda
Com um crepúsculo em seu cio crepitando
Sucedeu-se enfim. Já não mais se aguarda
Aquém-mar, a preamar do ódio chegando
Num momento de crise, uma cria a criar-se
Concede à sede ensejo de saciar-se


Vive e vem à lembrança a antiga glória
Inda viva nas covas dos tombados
No passado que vinca da marmórea
Granja que há no lamento dos pejados
A verdade, sua história, o mito, a estória
Não mais são discerníveis. Mestiçados
Como grãos derrubados no terreno
A colheita que traz trigo e veneno


Ressoa seco o oco dessa época de ouro
Mundo frustro de todas lendas lindas
Todo fausto que lhes falta, o desdouro
O destino desviado na sua vinda
Uma guerra, a derrota, o duradouro
Fim sem fim. E a desonra que dura ainda
E o frescor da desonra só se amansa
Na vindoura ganância de matança

Na masmorra da noite, uma apoteose
Prepara-se para sair. Assobia o vento
O prelúdio da sorte sob as doze
Casas de astros que trazem luz ao repto
E constela-se a selva na psicose
Duma infinda e profunda raiva. Inquieto,
O silêncio surpreende a noite e o luar
Com sua viva vontade de matar


Toda a sombra é só ódio. Uma vaga
De guerreiros caminha em passos tensos
Como quem marcha para a grande saga
Tesas faces no escuro, olhos intensos
A vontade que afasta o medo, e afaga
O desejo espalhado em mil incensos
Um desígnio, um propósito inflamável
Finalmente inflamado, enfim findável


Diante da legião, rugas e mais raiva
O ódio na senectude destilado
Debilitado corpo que a ira aviva
O derrotado espírito alforriado
Feito líder da tensa comitiva
Suas mãos vibram na aura áurea do que é azado
Na sua boca, um discurso para a coorte
Ramos de rimas que clamavam morte


“Povo guerreiro, sede fortes, sede
A morte que levais hoje, em secreto
Na vingança essa sede tem sua sede
Vingareis vossos mortos, é o decreto
Só com sangue a vingança cessa, cede
O sangue trará a honra, vos prometo
O túmulo dos vossos avós mortos
Força vos deu e dará nos desconfortos”


A tensão cresce e clama por avanço
A emoção bruta luta, quer soltar-se
A aflição vem, reclama sem descanso
Floração de ódio, a chama quer jactar-se
Contenção astuta, o instante do antes, manso
A canção. Surge o ensejo para inflamar-se
A ocasião, o foco, a raiva, só vingança
Sensação, força, a cólera, eis a herança


Passos. Dança marcial. Solo rival
Tezes tensas. Torpezas medram. Medo.
Susto. Donde surgiram? De onde é o mal?
Sofrimento. Lamentos. Tino bêbedo.
Resistência. Não há. É desigual.
Sorri a morte. Portal. Hora do credo.
(Crer na crença nessa hora derradeira
O temor - ter errado a vida inteira)


Já tecido o fim, tece-se os detalhes
Para mostrar o completo esgotamento
Dessa aldeia, que derruiu tal qual Versalhes
Palmo a palmo expugnada no caimento
Dos seus últimos filhos. Os retalhes
De sua glória e da história, o passamento.
Mas o real está bem além da lavra
Das fronteiras da força da palavra

sábado, 12 de novembro de 2011

Áporo – Carlos Drummond de Andrade

Um inseto cava
cava sem alarme
perfurando a terra
sem achar escape.

Que fazer, exausto,
em país bloqueado,
enlace de noite
raiz e minério?

Eis que o labirinto
(oh razão, mistério)
presto se desata:

em verde, sozinha,
antieuclidiana,
uma orquídea forma-se.

Destruição - Carlos Drummond de Andrade

Os amantes se amam cruelmente
e com se amarem tanto não se vêem.
Um se beija no outro, refletido.
Dois amantes que são? Dois inimigos.

Amantes são meninos estragados
pelo mimo de amar: e não percebem
quanto se pulverizam no enlaçar-se,
e como o que era mundo volve a nada.

Nada. Ninguém. Amor, puro fantasma
que os passeia de leve, assim a cobra
se imprime na lembrança de seu trilho.

E eles quedam mordidos para sempre.
deixaram de existir, mas o existido
continua a doer eternamente.

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Livro "A triste história do Ìndio Juca" - Autoria própria - Capítulo X - continuação (iii)

(...)

“Povo guerreiro, sede fortes, sede
A morte que levais hoje, em secreto
Na vingança essa sede tem sua sede
Vingareis vossos mortos, é o decreto
Só com sangue a vingança cessa, cede
O sangue trará a honra, vos prometo
O túmulo dos vossos avós mortos
Força vos deu e dará nos desconfortos”


A tensão cresce e clama por avanço
A emoção bruta luta, quer soltar-se
A aflição vem, reclama sem descanso
Floração de ódio, a chama quer jactar-se
Contenção astuta, o instante do antes, manso
A canção. Surge o ensejo para inflamar-se
A ocasião, o foco, a raiva, só vingança
Sensação, força, a cólera, eis a herança

Continua (...)

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

A máquina do mundo - Carlos Drummond de Andrade

E como eu palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco

se misturasse ao som de meus sapatos
que era pausado e seco; e aves pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretas

lentamente se fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,

a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.

Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável

pelas pupilas gastas na inspeção
contínua e dolorosa do deserto,
e pela mente exausta de mentar

toda uma realidade que transcende
a própria imagem sua debuxada
no rosto do mistério, nos abismos.

Abriu-se em calma pura, e convidando
quantos sentidos e intuições restavam
a quem de os ter usado os já perdera

e nem desejaria recobrá-los,
se em vão e para sempre repetimos
os mesmos sem roteiro tristes périplos,

convidando-os a todos, em coorte,
a se aplicarem sobre o pasto inédito
da natureza mítica das coisas,

assim me disse, embora voz alguma
ou sopro ou eco ou simples percussão
atestasse que alguém, sobre a montanha,

a outro alguém, noturno e miserável,
em colóquio se estava dirigindo:
"O que procuraste em ti ou fora de

teu ser restrito e nunca se mostrou,
mesmo afetando dar-se ou se rendendo,
e a cada instante mais se retraindo,

olha, repara, ausculta: essa riqueza
sobrante a toda pérola, essa ciência
sublime e formidável, mas hermética,

essa total explicação da vida,
esse nexo primeiro e singular,
que nem concebes mais, pois tão esquivo

se revelou ante a pesquisa ardente
em que te consumiste... vê, contempla,
abre teu peito para agasalhá-lo.”

As mais soberbas pontes e edifícios,
o que nas oficinas se elabora,
o que pensado foi e logo atinge

distância superior ao pensamento,
os recursos da terra dominados,
e as paixões e os impulsos e os tormentos

e tudo que define o ser terrestre
ou se prolonga até nos animais
e chega às plantas para se embeber

no sono rancoroso dos minérios,
dá volta ao mundo e torna a se engolfar,
na estranha ordem geométrica de tudo,

e o absurdo original e seus enigmas,
suas verdades altas mais que todos
monumentos erguidos à verdade:

e a memória dos deuses, e o solene
sentimento de morte, que floresce
no caule da existência mais gloriosa,

tudo se apresentou nesse relance
e me chamou para seu reino augusto,
afinal submetido à vista humana.

Mas, como eu relutasse em responder
a tal apelo assim maravilhoso,
pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,

a esperança mais mínima — esse anelo
de ver desvanecida a treva espessa
que entre os raios do sol inda se filtra;

como defuntas crenças convocadas
presto e fremente não se produzissem
a de novo tingir a neutra face

que vou pelos caminhos demonstrando,
e como se outro ser, não mais aquele
habitante de mim há tantos anos,

passasse a comandar minha vontade
que, já de si volúvel, se cerrava
semelhante a essas flores reticentes

em si mesmas abertas e fechadas;
como se um dom tardio já não fora
apetecível, antes despiciendo,

baixei os olhos, incurioso, lasso,
desdenhando colher a coisa oferta
que se abria gratuita a meu engenho.

A treva mais estrita já pousara
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida,

se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera,
seguia vagaroso, de mãos pensas.

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Livro "A triste história do Ìndio Juca" - Autoria própria - Capítulo X - continuação (ii)

(...)
Toda a sombra é só ódio. Uma vaga
De guerreiros caminha em passos tensos
Como quem marcha para a grande saga
Tesas faces no escuro, olhos intensos
A vontade que afasta o medo, e afaga
O desejo espalhado em mil incensos
Um desígnio, um propósito inflamável
Finalmente inflamado, enfim findável


Diante da legião, rugas e mais raiva
O ódio na senectude destilado
Debilitado corpo que a ira aviva
O derrotado espírito alforriado
Feito líder da tensa comitiva
Suas mãos vibram na aura áurea do que é azado
Na sua boca, um discurso para a coorte
Ramos de rimas que clamavam morte

Continua (...)

terça-feira, 8 de novembro de 2011

Quando eu morrer eu quero ficar - Mário de Andrade

Quando eu morrer quero ficar,
Não contem aos meus inimigos,
Sepultado em minha cidade,
Saudade.

Meus pés enterrem na rua Aurora,
No Paissandu deixem meu sexo,
Na Lopes Chaves a cabeça
Esqueçam.

No Pátio do Colégio afundem
O meu coração paulistano:
Um coração vivo e um defunto
Bem juntos.

Escondam no Correio o ouvido
Direito, o esquerdo nos Telégrafos,
Quero saber da vida alheia,
Sereia.

O nariz guardem nos rosais,
A língua no alto do Ipiranga
Para cantar a liberdade.
Saudade…

Os olhos lá no Jaraguá
Assistirão ao que há de vir,
O joelho na Universidade,
Saudade…

As mãos atirem por aí,
Que desvivam como viveram,
As tripas atirem pro Diabo,
Que o espírito será de Deus.
Adeus.

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Livro A triste história do índio Juca - Capítulo X - Continuação I - Autoria própria

(...)

Ressoa seco o oco dessa época de ouro
Mundo frustro de todas lendas lindas
Todo fausto que lhes falta, o desdouro
O destino desviado na sua vinda
Uma guerra, a derrota, o duradouro
Fim sem fim. E a desonra que dura ainda
E o frescor da desonra só se amansa
Na vindoura ganância de matança

Na masmorra da noite, uma apoteose
Prepara-se para sair. Assobia o vento
O prelúdio da sorte sob as doze
Casas de astros que trazem luz ao repto
E constela-se a selva na psicose
Duma infinda e profunda raiva. Inquieto,
O silêncio surpreende a noite e o luar
Com sua viva vontade de matar

Continua (...)

Aceitarás o amor como eu o encaro ?... - Mário de Andrade

Aceitarás o amor como eu o encaro ?...
...Azul bem leve, um nimbo, suavemente
Guarda-te a imagem, como um anteparo
Contra estes móveis de banal presente.


Tudo o que há de melhor e de mais raro
Vive em teu corpo nu de adolescente,
A perna assim jogada e o braço, o claro
Olhar preso no meu, perdidamente.


Não exijas mais nada. Não desejo
Também mais nada, só te olhar, enquanto
A realidade é simples, e isto apenas.


Que grandeza... a evasão total do pejo
Que nasce das imperfeições. O encanto
Que nasce das adorações serenas.

domingo, 6 de novembro de 2011

Livro "A triste história do Índio Juca" - Autoria própria - Capítulo X - início

A vergonha dormia numa mansarda
Dormia mas respirava, só esperando
Tarda e tanto maior tanto era mais tarda
Com um crepúsculo em seu cio crepitando
Sucedeu-se enfim. Já não mais se aguarda
Aquém-mar, a preamar do ódio chegando
Num momento de crise, uma cria a criar-se
Concede à sede ensejo de saciar-se


Vive e vem à lembrança a antiga glória
Inda viva nas covas dos tombados
No passado que vinca da marmórea
Granja que há no lamento dos pejados
A verdade, sua história, o mito, a estória
Não mais são discerníveis. Mestiçados
Como grãos derrubados no terreno
A colheita que traz trigo e veneno

Continua (...)

A cartomante - Autoria própria

Oh, senhora de todos sortilégios
Conheces o passado e ainda o futuro
Tens em tuas cartas todos os desejos
A certeza num mundo que é inseguro

Àqueles que te pagam, privilégios
Àqueles que duvidam, esconjuro
Alteras o destino com seu régio
Aviso do perigo nascituro

Mas se em tua verve não se tem valor
Se for tudo mentira o que tu dizes
Se nada sabes mas finges saber

Como saber se enganas sem pudor
Àquele que ouve a tudo o que tu dizes
Se fazes isto, quem vai te deter?

sábado, 5 de novembro de 2011

Proposição das rimas do poeta – Manuel Maria Barbosa du Bocage

Incultas produções da mocidade
Exponho a vossos olhos, ó leitores:
Vede-as com mágoa, vede-as com piedade,
Que elas buscam piedade, e não louvores:

Ponderai da Fortuna a variedade
Nos meus suspiros, lágrimas e amores;
Notai dos males seus a imensidade,
A curta duração de seus favores:

E se entre versos mil de sentimento
Encontrardes alguns cuja aparência
Indique festival contentamento,

Crede, ó mortais, que foram com violência
Escritos pela mão do Fingimento,
Cantados pela voz da Dependência.

Ciúme - Autoria própria

Oh monstro! Atormentaste ao mouro Otelo
Desdêmona morreu. Foi por tua causa
O mouro general não aguentou tê-lo
E no fim ele a si mesmo se acusa

Dom Casmurro sofreu o mesmo flagelo
Um dia viu Capitu como medusa
E o pior de tudo neste desmazelo
É padecer com tal certeza obtusa

O monstro de olhos verdes, e furioso
Insinua-se no olhar mesmo inocente
Miragem que se vê e então de repente

Torna-se real, mais ainda que a verdade
Na chegada não tem solenidade
Na partida, deixa um rastro impiedoso

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

O ciúme - Manuel Maria Barbosa du Bocage

Entre as tartáreas forjas, sempre acesas,
Jaz aos pés do tremendo, estígio nume,
O carrancudo, o rábido Ciúme,
Ensanguentadas as corruptas presas.

Traçando o plano de cruéis empresas,
Fervendo em ondas de sulfúreo lume,
Vibra das fauces o letal cardume
De hórridos males, de hórridas tristezas.

Pelas terríveis Fúrias instigado,
Lá sai do Inferno, e para mim se avança
O negro monstro, de áspides toucado.

Olhos em brasa de revés me lança;
Oh dor! Oh raiva! Oh morte!... Ei-lo a meu lado
Ferrando as garras na vipérea trança.

Saudade - Autoria própria

Dá-se um passo na estrada que se espreme
Passa-se o rumo e o sumo que o suporta
Mira no que antepassa, a estada morta
Como nau que se espaça do seu leme

Quanto mais se afasta, mais se espreme
Quanto mais se apaga, mais se exorta
Quanto mais se perde, mais se comporta
Rio que só se alonga, por mais que se reme

De olhos fechados, vê-se o hoje de outrora
A flor arrancada é a que mais aflora
Esse ontem que perdura agora e sempre

Foi-se ontem, mas ficou em perene aurora
O antes que é mais presente do que o agora
Eterno, sempiterno, para sempre

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Os versos que te fiz – Florbela Espanca

Deixa dizer-te os lindos versos raros
Que a minha boca tem pra te dizer !
São talhados em mármore de Paros
Cinzelados por mim pra te oferecer.


Têm dolência de veludos caros,
São como sedas pálidas a arder ...
Deixa dizer-te os lindos versos raros
Que foram feitos pra te endoidecer !


Mas, meu Amor, eu não tos digo ainda ...
Que a boca da mulher é sempre linda
Se dentro guarda um verso que não diz !


Amo-te tanto ! E nunca te beijei ...
E nesse beijo, Amor, que eu te não dei
Guardo os versos mais lindos que te fiz!

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

O meu impossível – Florbela Espanca

Minh'alma ardente é uma fogueira acesa,
É um brasido enorme a crepitar!
Ânsia de procurar sem encontrar
A chama onde queimar uma incerteza!


Tudo é vago e incompleto! E o que mais pesa
É nada ser perfeito. É deslumbrar
A noite tormentosa até cegar,
E tudo ser em vão! Deus, que tristeza!...


Aos meus irmãos na dor já disse tudo
E não me compreenderam!... Vão e mudo
Foi tudo o que entendi e o que pressinto...


Mas se eu pudesse a mágoa que em mim chora
Contar, não a chorava como agora,
Irmãos, não a sentia como a sinto!...

domingo, 30 de outubro de 2011

O bobo da corte - Autoria própria

Tu fazes rir sem dó dos poderosos
Dize-lhes a verdade num espelho
Deformado p´lo real, mas anguloso
Detalhe visto pelo teu evangelho

Cortejas os perigos, audacioso
Sempre que deixas tais nobres vermelhos
Tua ironia é mortal, oh belicoso
Os atacados ficam nus, de joelhos

Conheces as intrigas palacianas
Nelas navegas com habilidade
A espada de um te salva da arma de outro

Após os risos resta-te a profana
Vida oca de quem vive da crueldade
Rei dos risos, da própria alegria indouto

Psicologia de um vencido – Augusto dos Anjos

Eu, filho do carbono e do amoníaco,
Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênese da infância,
A influência má dos signos do zodíaco.

Profundissimamente hipocondríaco,
Este ambiente me causa repugnância…
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia
Que se escapa da boca de um cardíaco.

Já o verme – este operário das ruínas -
Que o sangue podre das carnificinas
Come, e à vida em geral declara guerra,

Anda a espreitar meus olhos para roê-los,
E há de deixar-me apenas os cabelos,
Na frialdade inorgânica da terra!

sábado, 29 de outubro de 2011

O sacerdote - Autoria própria

Dedicou anos preciosos da sua vida
Ao mais profundo estudo do evangelho
De renúncia em renúncia sua jazida
De virtudes formou-se antes de velho

A palavra de Cristo, suas feridas
Na cruz donde jorrou o sangue vermelho
Eis o exemplo, a medida que valida
Toda a carne esfolada nos seus joelhos

Porém o mundo é próximo e o pecado
Insinua-se dia após dia na sua mente
A tentação da carne não se afasta

E na sua fortaleza, o que é errado
Sabe penetrar pelo ambivalente
No orgulho da virtude ele se alastra

A prostituta - Autoria própria

No ápice da beleza, a fulgurância
A magia feminina que domina
Co´a volúpia alheia faz a sua mercancia
Seus dotes naturais, eis a sua mina

Corpo, voz, tato, gesto, sua fragrância
Componentes do todo que alucina
Quando ama, ainda que sinta repugnância
Sacia a ânsia de um ser tal Messalina

O tempo passa e passa a natureza
Ficam as cicatrizes do passado
Os abraços, os beijos, confidências

São escassos no ocaso da beleza
Não há afago no ego ora malfadado
Acariciou. Restou-lhe só a carência

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Juca Pirama - Gonçalves Dias

I


No meio das tabas de amenos verdores,
Cercadas de troncos — cobertos de flores,
Alteiam-se os tetos d'altiva nação;
São muitos seus filhos, nos ânimos fortes,
Temíveis na guerra, que em densas coortes
Assombram das matas a imensa extensão.


São rudos, severos, sedentos de glória,
Já prélios incitam, já cantam vitória,
Já meigos atendem à voz do cantor:
São todos Timbiras, guerreiros valentes!
Seu nome lá voa na boca das gentes,
Condão de prodígios, de glória e terror!


As tribos vizinhas, sem forças, sem brio,
As armas quebrando, lançando-as ao rio,
O incenso aspiraram dos seus maracás:
Medrosos das guerras que os fortes acendem,
Custosos tributos ignavos lá rendem,
Aos duros guerreiros sujeitos na paz.


No centro da taba se estende um terreiro,
Onde ora se aduna o concílio guerreiro
Da tribo senhora, das tribos servis:
Os velhos sentados praticam d'outrora,
E os moços inquietos, que a festa enamora,
Derramam-se em torno dum índio infeliz.


Quem é? — ninguém sabe: seu nome é ignoto,
Sua tribo não diz: — de um povo remoto
Descende por certo — dum povo gentil;
Assim lá na Grécia ao escravo insulano
Tornavam distinto do vil muçulmano
As linhas corretas do nobre perfil.


Por casos de guerra caiu prisioneiro
Nas mãos dos Timbiras: — no extenso terreiro
Assola-se o teto, que o teve em prisão;
Convidam-se as tribos dos seus arredores,
Cuidosos se incumbem do vaso das cores,
Dos vários aprestos da honrosa função.


Acerva-se a lenha da vasta fogueira,
Entesa-se a corda de embira ligeira,
Adorna-se a maça com penas gentis:
A custo, entre as vagas do povo da aldeia
Caminha o Timbira, que a turba rodeia,
Garboso nas plumas de vário matiz.
Entanto as mulheres com leda trigança,
Afeitas ao rito da bárbara usança,
O índio já querem cativo acabar:
A coma lhe cortam, os membros lhe tingem,
Brilhante enduape no corpo lhe cingem,
Sombreia-lhe a fronte gentil canitar.



II


Em fundos vasos d'alvacenta argila
ferve o cauim;
Enchem-se as copas, o prazer começa,
reina o festim.
O prisioneiro, cuja morte anseiam,
sentado está,
O prisioneiro, que outro sol no ocaso
jamais verá!


A dura corda, que lhe enlaça o colo,
mostra-lhe o fim
Da vida escura, que será mais breve
do que o festim!


Contudo os olhos d'ignóbil pranto
secos estão;
Mudos os lábios não descerram queixas
do coração.
Mas um martírio, que encobrir não pode,
em rugas faz
A mentirosa placidez do rosto
na fronte audaz!


Que tens, guerreiro? Que temor te assalta
no passo horrendo?
Honra das tabas que nascer te viram,
folga morrendo.


Folga morrendo; porque além dos Andes
revive o forte,
Que soube ufano contrastar os medos
da fria morte.


Rasteira grama, exposta ao sol, à chuva,
lá murcha e pende:
Somente ao tronco, que devassa os ares,
o raio ofende!


Que foi? Tupã mandou que ele caísse,
como viveu;
E o caçador que o avistou prostrado
esmoreceu!


Que temes, ó guerreiro? Além dos Andes
revive o forte,
Que soube ufano contrastar os medos
da fria morte.



III


Em larga roda de novéis guerreiros
Ledo caminha o festival Timbira,
A quem do sacrifício cabe as honras.
Na fronte o canitar sacode em ondas,
O enduape na cinta se embalança,
Na destra mão sopesa a ivirapeme,
Orgulhoso e pujante. — Ao menor passo


Colar d'alvo marfim, insígnia d'honra,
Que lhe orna o colo e o peito, ruge e freme,
Como que por feitiço não sabido
Encantadas ali as almas grandes
Dos vencidos Tapuias, inda chorem
Serem glória e brasão d'imigos feros.


“Eis-me aqui, diz ao índio prisioneiro;
“Pois que fraco, e sem tribo, e sem família,
“As nossas matas devassaste ousado,
“Morrerás morte vil da mão de um forte.”


Vem a terreiro o mísero contrário;
Do colo à cinta a muçurana desce:
“Dize-nos quem és, teus feitos canta,
“Ou se mais te apraz, defende-te.” Começa
O índio, que ao redor derrama os olhos,
Com triste voz que os ânimos comove.



IV


Meu canto de morte,
Guerreiros, ouvi:
Sou filho das selvas,
Nas selvas cresci;
Guerreiros, descendo
Da tribo Tupi.


Da tribo pujante,
Que agora anda errante
Por fado inconstante,
Guerreiros, nasci;
Sou bravo, sou forte,
Sou filho do Norte;
Meu canto de morte,
Guerreiros, ouvi.


Já vi cruas brigas,
De tribos imigas,
E as duras fadigas
Da guerra provei;
Nas ondas mendaces
Senti pelas faces
Os silvos fugaces
Dos ventos que amei.


Andei longes terras,
Lidei cruas guerras,
Vaguei pelas serras
Dos vis Aimorés;
Vi lutas de bravos,
Vi fortes — escravos!
De estranhos ignavos
Calcados aos pés.


E os campos talados,
E os arcos quebrados,
E os piagas coitados
Já sem maracás;
E os meigos cantores,
Servindo a senhores,
Que vinham traidores,
Com mostras de paz


Aos golpes do imigo
Meu último amigo,
Sem lar, sem abrigo
Caiu junto a mi!
Com plácido rosto,
Sereno e composto,
O acerbo desgosto
Comigo sofri.


Meu pai a meu lado
Já cego e quebrado,
De penas ralado,
Firmava-se em mi:
Nós ambos, mesquinhos,
Por ínvios caminhos,
Cobertos d'espinhos
Chegamos aqui!


O velho no entanto
Sofrendo já tanto
De fome e quebranto,
Só qu'ria morrer!
Não mais me contenho,
Nas matas me embrenho,
Das frechas que tenho
Me quero valer.


Então, forasteiro,
Caí prisioneiro
De um troço guerreiro
Com que me encontrei:
O cru dessossego
Do pai fraco e cego,
Enquanto não chego,
Qual seja — dizei!


Eu era o seu guia
Na noite sombria,
A só alegria
Que Deus lhe deixou:
Em mim se apoiava,
Em mim se firmava,
Em mim descansava,
Que filho lhe sou.


Ao velho coitado
De penas ralado,
Já cego e quebrado,
Que resta? - Morrer.
Enquanto descreve
O giro tão breve
Da vida que teve,
Deixa-me viver!


Não vil, não ignavo,
Mas forte, mas bravo,
Serei vosso escravo:
Aqui virei ter.
Guerreiros, não coro
Do pranto que choro;
Se a vida deploro,
Também sei morrer.



V


Soltai-o! — diz o chefe. Pasma a turba;
Os guerreiros murmuram: mal ouviram,
Nem pode nunca um chefe dar tal ordem!
Brada segunda vez com voz mais alta,
Afrouxam-se as prisões, a embira cede,
A custo, sim; mas cede: o estranho é salvo,
— Timbira, diz o índio enternecido,
Solto apenas dos nós que o seguravam:
És um guerreiro ilustre, um grande chefe,
Tu que assim do meu mal te comoveste,
Nem sofres que, transposta a natureza,
Com olhos onde a luz já não cintila,
Chore a morte do filho o pai cansado,
Que somente por seu na voz conhece.
— És livre; parte.
— E voltarei.
— Debalde.


— Sim, voltarei, morto meu pai.


— Não voltes!


É bem feliz, se existe, em que não veja,
Que filho tem, qual chora: és livre; parte!
— Acaso tu supões que me acobardo,
Que receio morrer!
— És livre; parte!


— Ora não partirei; quero provar-te
Que um filho dos Tupis vive com honra,
E com honra maior, se acaso vencem,
Da morte o passo glorioso afronta.


— Mentiste, que um Tupi não chora nunca,
E tu choraste!... parte; não queremos
Com carne vil enfraquecer os fortes.
Sobresteve o Tupi: - arfando em ondas
O rebater do coração se ouvia
Precipite. - Do rosto afogueado
Gélidas bagas de suor corriam:
Talvez que o assaltava um pensamento...
Já não... que na enlutada fantasia,
Um pesar, um martírio ao mesmo tempo,
Do velho pai a moribunda imagem
Quase bradar-lhe ouvia: - Ingrato! ingrato!
Curvado o colo, taciturno e frio,
Espectro d'homem, penetrou no bosque!



VI


— Filho meu, onde estás?


— Ao vosso lado;
Aqui vos trago provisões: tomai-as,
As vossas forças restaurar perdidas,
E a caminho, e já!


— Tardaste muito!


Não era nado o sol, quando partiste,
E frouxo o seu calor já sinto agora!


— Sim, demorei-me a divagar sem rumo,
Perdi-me nestas matas intrincadas,
Reaviei-me e tornei; mas urge o tempo;
Convém partir, e já!


— Que novos males


Nos resta de sofrer? — que novas dores,
No outro fado pior Tupã nos guarda?
— As setas da aflição já se esgotaram,
Nem para novo golpe espaço intacto
Em nossos corpos resta.


— Mas tu tremes


— Talvez do afã da caça...


— Oh filho caro


Um quê misterioso aqui me fala,
Aqui no coração; piedosa fraude
Será por certo, que não mentes nunca!
Não conheces temor, e agora temes?
Vejo e sei: é Tupã que nos aflige,
E contra o seu querer não valem brios.
Partamos!... — E com mão trêmula, incerta
Procura o filho, tateando as trevas
Da sua noite lúgubre e medonha.
Sentindo o acre odor das frescas tintas,
Uma idéia fatal correu-lhe à mente...
Do filho os membros gélidos apalpa,
E a dolorosa maciez das plumas
Conhece estremecendo: — foge, volta,
encontra sob as mãos o duro crânio,
Despido então do natural ornato!...
Recua aflito e pávido, cobrindo
Às mãos ambas os olhos fulminados,
Como que teme ainda o triste velho
De ver, não mais cruel, porém mais clara,
Daquele exício grande a imagem viva
Ante os olhos do corpo afigurada.
Não era que a verdade conhecesse
Inteira e tão cruel qual tinha sido;
Mas que funesto azar correra o filho,
Ele o via; ele o tinha ali presente;
E era de repetir-se a cada instante.
A dor passada, a previsão futura
E o presente tão negro, ali os tinha;
Ali no coração se concentrava,
Era num ponto só, mas era a morte!


— Tu prisioneiro, tu?


— Vós o dissesses.


— Dos índios?


— Sim.


— De que nação?


— Timbiras


— E a muçurana funeral rompeste,
Dos falsos manitôs quebraste a maça...
— Nada fiz... aqui estou.


— Nada! —


Emudecem;


Curto instante depois prossegue o velho:
— Tu és valente, bem o sei; confesso,
Fizeste-o, certo, ou já não foras vivo!
— Nada fiz; mas souberam da existência
De um pobre velho, que em mim só vivia...
— E depois?...


—Eis-me aqui.


—Fica essa taba?


— Na direção do sol, quando transmonta.


— Longe?


— Não muito.


— Tens razão: partamos.


— E quereis ir?...


— Na direção do ocaso.



VII


“Por amor de um triste velho,
Que ao termo fatal já chega,
Vós, guerreiros, concedesses
A vida a um prisioneiro.
Ação tão nobre vos honra,
Nem tão alta cortesia
Vi eu jamais praticada
Entre os Tupis — e mas foram
Senhores em gentileza.


“Eu porém nunca vencido,
Nem os combates por armas
Nem por nobreza nos atos;
Aqui venho, e o filho trago.
Vós o dizeis prisioneiro,
Seja assim como dizeis;
Manda! vir a lenha, o fogo,
A maça do sacrifício
E a muçurana ligeira:
Em tudo o rito se cumpra!
E quando eu for só na terra,
Certo acharei entre os vossos,
Que tão gentis se revelam,
Alguém que meus passos guie;
Alguém, que vendo o meu peito
Coberto de cicatrizes,
Tomando a vez de meu filho,
De haver-me por pai se ufane!”


Mas o chefe dos Timbiras,
Os sobrolhos encrespando,
Ao velho Tupi guerreiro
Responde com torvo acento:
— Nada farei do que dizes:
É teu filho imbele e fraco!
Aviltaria o triunfo
Da mais guerreira das tribos
Derramar seu ignóbil sangue:
Ele chorou de cobarde;
Nós outros, fortes Timbiras,
Só de heróis fazemos pasto. —
Do velho Tupi guerreiro
A surda voz na garganta
Faz ouvir uns sons confusos,
Como os rugidos de um tigre,
Que pouco a pouco se assanha!



VIII


“Tu choraste em presença da morte?
Na presença de estranhos choraste?
Não descende o cobarde do forte;
Pois choraste, meu filho não és!
Possas tu, descendente maldito
De uma tribo de nobres guerreiros,
Implorando cruéis forasteiros,
Seres presa de vis Aimorés.


“Possas tu, isolado na terra,
Sem arrimo e sem pátria vagando,
Rejeitado da morte na guerra,
Rejeitado dos homens na paz,
Ser das gentes o espectro execrado;
Não encontres amor nas mulheres,
Teus amigos, se amigos tiveres,
Tenham alma inconstante e falaz!


“Não encontres doçura no dia,
Nem as cores da aurora te ameiguem,
E entre as larvas da noite sombria
Nunca possas descanso gozar:
Não encontres um tronco, uma pedra,
Posta ao sol, posta às chuvas e aos ventos,
Padecendo os maiores tormentos,
Onde possas a fronte pousar.


“Que a teus passos a relva se torre;
Murchem prados, a flor desfaleça,
E o regato que límpido corre,
Mais te acenda o vesano furor;
Suas águas depressa se tornem,
Ao contacto dos lábios sedentos,
Lago impuro de vermes nojentos,
Donde festas como asco e terror!


“Sempre o céu, como um teto incendido,
Creste e punja teus membros malditos
E o oceano de pó denegrido
Seja a terra ao ignavo tupi!
Miserável, faminto, sedento,
Manitôs lhe não falem nos sonhos,
E do horror os espectros medonhos
Traga sempre o cobarde após si.


“Um amigo não tenhas piedoso
Que o teu corpo na terra embalsame,
Pondo em vaso d'argila cuidoso
Arco e frecha e tacape a teus pés!
Sé maldito, e sozinho na terra;
Pois que a tanta vileza chegaste,
Que em presença da morte choraste,
Tu, cobarde, meu filho não és."



IX


Isto dizendo, o meserando velho
A quem Tupã tamanha dor, tal fado
Já nos confins da vida reservara,
Vai com trêmulo pé, com as mãos já frias
Da sua noite escura as densas trevas
Palpando. - Alarma! alarma! - O velho para.
O grito que escutou é voz do filho,
Voz de guerra que ouviu já tantas vezes
Noutra quadra melhor. - Alarma! alarma!
— Esse momento só vale apagar-lhe
Os tão compridos transes, as angústias,
Que o frio coração lhe atormentaram
De guerreiro e de pai: - vale, e de sobra.
Ele que em tanta dor se contivera,
Tomado pelo súbito contraste,
Desfaz-se agora em pranto copioso,
Que o exaurido coração remoça.


A taba se alborota, os golpes descem,
Gritos, imprecações profundas soam,
Emaranhada a multidão braveja,
Revolve-se, enovela-se confusa,
E mais revolta em mor furor se acende.
E os sons dos golpes que incessantes fervem.
Vozes, gemidos, estertor de morte
Vão longe pelas ermas serranias
Da humana tempestade propagando
Quantas vagas de povo enfurecido
Contra um rochedo vivo se quebravam.


Era ele, o Tupi; nem fora justo
Que a fama dos Tupis - o nome, a glória,
Aturado labor de tantos anos,
Derradeiro brasão da raça extinta,
De um jacto e por um só se aniquilasse.


— Basta! clama o chefe dos Timbiras,
— Basta, guerreiro ilustre! assaz lutaste,
E para o sacrifício é mister forças. -
O guerreiro parou, caiu nos braços
Do velho pai, que o cinge contra o peito,
Com lágrimas de júbilo bradando:
“Este, sim, que é meu filho muito amado!


“E pois que o acho enfim, qual sempre o tive,
“Corram livres as lágrimas que choro,
“Estas lágrimas, sim, que não desonram.”



X


Um velho Timbira, coberto de glória,
guardou a memória
Do moço guerreiro, do velho Tupi!


E à noite, nas tabas, se alguém duvidava
do que ele contava,
Dizia prudente: - “Meninos, eu vi!
“Eu vi o brioso no largo terreiro
cantar prisioneiro
Seu canto de morte, que nunca esqueci:
Valente, como era, chorou sem ter pejo;
parece que o vejo,
Que o tenho nest'hora diante de mim.


“Eu disse comigo: Que infâmia d’escravo!
Pois não, era um bravo;
Valente e brioso, como ele, não vi!
E à fé que vos digo: parece-me encanto
Que quem chorou tanto,
Tivesse a coragem que tinha o Tupi!"


Assim o Timbira, coberto de glória,
guardava a memória
Do moço guerreiro, do velho Tupi.
E à noite nas tabas, se alguém duvidava
do que ele contava,
Tomava prudente: "Meninos, eu vi!”

Tributo a Carlos Drummond de Andrade - Autoria própria

Caminho, pedra, poeta
Senão que o poema espeta

O poeta no caminho
Misterioso e sozinho

Ninguém entende a pedra
Que não se desempedra

Porque somente o poeta
Sabe o que a pedra afeta

Carlos Drummond viu a pedra
No poema que ainda medra

Batalha aberta pelo lirismo - Autoria própria

Todo poeta se acha um arquiteto
Pensa que no poema tudo pode
Porém o artesão Metro lhe acode
E logo põe o poema no seu teto

Pois só assim cabe toda alegria
E Carlitos com clara pureza
No cultivo dessa teogonia
É que se colhe rara beleza

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A alegre palavra quis entrar no verso.
Ouviu:
- És oxítona?
-Com quem rimas?
Fugiu.
Desceu para brincar com uma criança.

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Como eu não possuo – Mário de Sá-Carneiro

Olho em volta de mim. Todos possuem
Um afecto, um sorriso ou um abraço,
Só para mim as ânsias se diluem
E não possuo mesmo quando enlaço

Roça por mi, em longe, a teoria
Dos espasmos golfados ruivamente
São êxtases da cor que eu fremiria
Mas a minh´alma pára e não os sente!

Quero sentir. Não sei...perco-me todo...
Não posso afeiçoar-me nem ser eu;
Falta-me egoísmo para ascender ao céu,
Falta-me unção pra me afundar no lodo.

Não sou amigo de ninguém. Pra o ser
Forçoso me era antes possuir
Quem eu estimasse – ou homem ou mulher,
E eu não logro nunca possuir!...

Castrado d´alma e sem saber fixar-me
Tarde a tarde na minha dor me afundo...
- Serei um emigrado doutro mundo
Que nem na minha dor posso encontrar-me?...

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Escavação - Mário de Sá-Carneiro

Numa ânsia de ter alguma cousa,

Divago por mim mesmo a procurar,

Desço-me todo, em vão, sem nada achar,

E a minh´alma perdida não repousa.



Nada tendo, decido-me a criar:

Brando a espada: sou luz harmoniosa

E chama genial que tudo ousa

Unicamente à força de sonhar...



Mas a vitória fulva esvai-se logo

E cinzas, cinzas só, em vez de fogo...

- Onde existo que não existo em mim?



.....................................................

.....................................................



Um cemitério falso sem ossadas,

Noites d´amor sem bocas esmagadas –

Tudo outro espasmo que princípio ou fim...

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Desnuda - Autoria própria

Não se dispa ainda

Quero me despedir

De sua roupa



Não me ofereça

Deixe-me conquistar

Sua intimidade



Resista

Peça a peça

Recuse meus beijos

Se necessário



Não ceda à tirania

Das minhas mãos



Esconda os elogios

Acordados

Pela lascívia



Lute

Mas não se esqueça

Só venceremos

Se perdermos

domingo, 23 de outubro de 2011

Despedida inesperada - autoria própria

No quebra-cabeças falta uma peça
Não há tapete para se empurrar a poeira
O castelo de areia ainda não está pronto
O baralho ainda está misturado na mesa
Esgotaram-se as economias da ampulheta
Calou-se a tinta da caneta
Só cabe mais uma palavra no elevador:
Tchau!

Fogo-fátuo – Olavo Bilac

Cabelos brancos! dai-me, enfim, a calma
A esta tortura de homem e de artista:
Desdém pelo que encerra a minha palma,
E ambição pelo mais que não exista;

Esta febre, que o espírito me encalma
E logo me enregela; esta conquista
De idéias, ao nascer, morrendo na alma,
De mundos, ao raiar, murchando à vista:

Esta melancolia sem remédio,
Saudade sem razão, louca esperança
Ardendo em choros e findando em tédio;

Esta ansiedade absurda, esta corrida
Para fugir o que o meu sonho alcança,
Para querer o que não há na vida!

sábado, 22 de outubro de 2011

Língua portuguesa - Olavo Bilac

Última flor do Lácio, inculta e bela,
És, a um tempo, esplendor e sepultura:
Ouro nativo, que na ganga impura
A bruta mina entre os cascalhos vela...

Amo-te assim, desconhecida e obscura,
Tuba de alto clangor, lira singela,
Que tens o trom e o silvo da procela
E o arrolo da saudade e da ternura!

Amo o teu viço agreste e o teu aroma
De virgens selvas e de oceano largo!
Amo-te, ó rude e doloroso idioma,

Em que da voz materna ouvi: "meu filho!"
E em que Camões chorou, no exílio amargo,
O gênio sem ventura e o amor sem brilho!

Sonetos bíblicos - Autoria própria

I
Do oriente uma estrela anunciou a vinda
Do menino Jesus em casa discreta
Três magos e a homenagem merecida
E a fúria do rei Herodes foi desperta

Ouro, incenso e mais mirra, mas sua vida
Estava em risco, e a ameaça era concreta
Sua família armou rápida partida
A fuga para o Egito após o alerta

E Herodes promoveu hedionda matança
Viu-se jorrar o sangue de inocentes
Pequenos anjos co´ a idade de Deus

Co´a morte do perverso e sua vingança
Há a volta para a terra dos parentes
A família retorna ao povo hebreu

II
Tempos após, Jesus foi até o deserto
Foi tentado p´lo diabo, este maldito
Jejum e fome, pedra em pão, o objeto
A tentação primeira não foi mito

Segunda tentação, segundo veto
Atirar-se do alto ao chão pois está escrito
Que Deus o salvaria deste projeto
Mas Jesus disse não ao senhor desdito

Então o diabo ofertou os reinos da terra
Ao nosso senhor, com todas riquezas
Bastando para tanto o seu louvor

Jesus disse não para o que só erra
Foi fiel a Deus pai, vera fortaleza
O Deus que nos devota todo amor

Como encontrar palavras para a beleza – Autoria própria

Como encontrar palavras p´ra a beleza
Que está além das hipérboles de um poema
Sequer sílaba de ouro teria a alteza
Da graça e formosura desse tema

Pois encontro-me então nesse dilema
De ver sem descrever tal esbelteza
Por mais que busque o mais belo fonema
É mais bela ainda a própria natureza

Dedico-lhe então versos esforçados
Co´o carinho de quem muito lhe admira
Em silêncio eloquente mas discreto

Que esse meu grito mudo e ora alforriado
Seja lido por seus olhos diletos
Último anseio do poema que suspira

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Enivrez-vous - Charles Baudelaire

Il faut être toujours ivre. Tout est là: c'est l'unique question. Pour ne pas sentir l'horrible fardeau du Temps qui brise vos épaules et vous penche vers la terre, il faut vous enivrer sans trêve. Mais de quoi? De vin, de poésie ou de vertu, à votre guise. Mais enivrez-vous.

Et si quelquefois, sur les marches d'un palais, sur l'herbe verte d'un fossé, dans la solitude morne de votre chambre, vous vous réveillez, l'ivresse déjà diminuée ou disparue, demandez au vent, à la vague, à l'étoile, à l'oiseau, à l'horloge, à tout ce qui fuit, à tout ce qui gémit, à tout ce qui roule, à tout ce qui chante, à tout ce qui parle, demandez quelle heure il est et le vent, la vague, l'étoile, l'oiseau, l'horloge, vous répondront:

"Il est l'heure de s'enivrer! Pour n'être pas les esclaves martyrisés du Temps, enivrez-vous; enivrez-vous sans cesse! De vin, de poésie ou de vertu, à votre guise."

Embriaguem-se - Tradução livre

É necessário estar constantemente embriagado. Está é a única questão. Para não sentir o horrível fardo do tempo que faz pender para a terra, é necessário embriagar-se sem cessar. Mas de quê? De vinho, poesia ou virtude, à escolha. Mas embriaguem-se.

E se alguma vez sobre os degraus de um palácio, sobre a relva verde de um fosso, dentro da solidão morna de seu quarto, vocês despertarem com a embriaguez já diminuída ou extinta, perguntem ao vento, à vaga, à estrela, ao pássaro, ao relógio, a tudo o que foge, a tudo o que geme, a tudo o que rola, a tudo o que canta, a tudo o que fala, perguntem que horas são e o vento, a vaga, a estrela, o pássaro, o relógio, lhes responderão:

“É a hora de embriagar-se! Para não ser um escravo martirizado pelo tempo, embriague-se; embriague-se sem cessar! De vinho, poesia ou de virtude, à escolha."

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Sábado de carnaval - Autoria própria

Taranranranranranram
Tararanranranranran
Taranranranranranram
Tararanranranranram
Taranranranranranranranram
Taranananranranaram
TAN...

Frevo, folia
Sol, sombrinha
Olinda, que linda!
Onomatopeia perdida
Bêbada, vadia
Vagueia pelas ladeiras
Entre bonecos de madeira
Com o frevo retumbando

E sobe, e desce e vem
E aperta, e solta, e estica
E beija, e foge e corre
E bebe, bebe, bebe
Sem nada entender

O sol que castiga a tez
Que queima e bronzeia
A gata molhada
Com água e cerveja
Que escapa lisa
Dos beijos que se perdem
No ar

E o vendedor que vende e assiste
Ganha o pão com a cerveja
E embora ele esteja
Ainda trabalhando

Por dentro ele pula
Cobiça a menina
Que compra uma bebida
Fermentada
8:30 da manhã

Na sua blusinha
Branca
Que mais mostra que esconde
Ufana o desejo
Profana o juízo
E concita o herege
Folião
A perder a linha
Nem que vejam
Nem que seja
Nem que esteja
No meio
Da multidão

Neste segmento da hora
Sem demora
O álcool já fermenta
A imaginação

Cogito, ergo sum
Penso, logo existo
Bebo, logo existo
Bebo, logo insisto
Bebo e não desisto
Penso e insisto
Peço, não desisto
De beijar a foliã

E a moça toda prosa
Sente-se a rainha
Disputada
Rapunzel no chão
Com cabelos desgrenhados
E seus olhos bêbados
Perdeu a contabilidade
Dos beijos dados

O casal recém-agarrado
Renhidos numa disputa
Enredados num abraço
Na luta por um beijo
Ele quer, ela refuga
Ele tenta, ela finta
Ele esquenta, ela apaga
Ele aproxima, ela esgrima
Com o meneio de seu rosto

E nesse breve devaneio
Num momento desprevenido
Ela vacila e o atila
Ele beija e ela deixa

No entanto,
Enquanto
Ele comemora
O desenlace
Ela oferece sua face
Para o desembarque de um beijo alheio
E segue navegando
Na nau doutro pirata

Tararararararnaram

O bêbado Platão
Filósofo de botequim
Arrota erudição
Roubada de livros
Que não leu

Confunde Derrida com Sartre
Conclama Che e Lampião
Culpa o capitalismo
Cita Nietzsche
E espirra

Cogito, ergo sum
Bebo, logo sou bebum

Mas estamos em Olinda
Vendo o Recife
Perto do berço
De Manuel Bandeira
E do ataque do Carrossel
Holandês

Pois lá vêm os gringos
Brancos, vermelhos
Não entendem por que pulam
E de onde pululam
Tantos foliões

E o menino que trabalha
No sol, no som, na rua
No barulho, no aperto
Com orgulho
Da multidão

Que venera sua Olinda
Que visita suas Igrejas
Que veleja no Recife
Que valoriza a cerveja
Que ele vende

Taranranranranranram
Tararanranranranram

E lá vêm os bonecos
Bonecos gigantes
Imponentes
Majestosos
Resistem ao sol
Rasgando caminho no reino de Momo

Eles balançam e seguem
Marchando com feição invariante
Varando a colmeia de gentios
Com o frevo no front

Ali no meio
Um homem
Que não delira
É dilacerado pela folia
Retira-se da mentira que vê
Vai para a TV
Ver outra mentira

Afogado em falsidades
Insulado no que sente
Naufragou na multidão
Liberta sua frustração
Num palavrão
E constatações inúteis
Ilusões fúteis
Lamentos moucos
Doestos ocos
Discurso louco

Todos sabem o que se passa
Todos sabem o que se passa
Todos ignoram o que se passa
Todos ignoram o que se passa
Ignaros voluntários
Ignotos vários
Hipnose consentida

E a festa continua

Taranraranraran...

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Epigrama - Gregório de Mattos e Guerra - Séc. XVII

I

Que falta nesta cidade?... Verdade.
Que mais por sua desonra?... Honra.
Falta mais que se lhe ponha?... Vergonha.

O demo a viver se exponha,
Por mais que a fama a exalta,
Numa cidade onde falta
Verdade, honra, vergonha.

Quem a pôs neste rocrócio?... Negócio.
Quem causa tal perdição?... Ambição.
E no meio desta loucura?... Usura.

Notável desaventura
De um povo néscio e sandeu,
Que não sabe que perdeu
Negócio, ambição, usura.

Quais são seus doces objetos?... Pretos.
Tem outros bens mais maciços?... Mestiços.
Quais destes lhe são mais gratos?... Mulatos.

Dou ao Demo os insensatos,
Dou ao Demo o povo asnal,
Que estima por cabedal,
Pretos, mestiços, mulatos.

Quem faz os círios mesquinhos?... Meirinhos.
Quem faz as farinhas tardas?... Guardas.
Quem as tem nos aposentos?... Sargentos.

Os círios lá vem aos centos,
E a terra fica esfaimando,
Porque os vão atravessando
Meirinhos, guardas, sargentos.

E que justiça a resguarda?... Bastarda.
É grátis distribuída?... Vendida.
Que tem, que a todos assusta?... Injusta.

Valha-nos Deus, o que custa
O que El-Rei nos dá de graça.
Que anda a Justiça na praça
Bastarda, vendida, injusta.

Que vai pela clerezia?... Simonia.
E pelos membros da Igreja?... Inveja.
Cuidei que mais se lhe punha?... Unha

Sazonada caramunha,
Enfim, que na Santa Sé
O que mais se pratica é
Simonia, inveja e unha.

E nos frades há manqueiras?... Freiras.
Em que ocupam os serões?... Sermões.
Não se ocupam em disputas?... Putas.

Com palavras dissolutas
Me concluo na verdade,
Que as lidas todas de um frade
São freiras, sermões e putas.

O açúcar já acabou?... Baixou.
E o dinheiro se extinguiu?... Subiu.
Logo já convalesceu?... Morreu.

À Bahia aconteceu
O que a um doente acontece:
Cai na cama, e o mal cresce,
Baixou, subiu, morreu.

A Câmara não acode?... Não pode.
Pois não tem todo o poder?... Não quer.
É que o Governo a convence?... Não vence.

Quem haverá que tal pense,
Que uma câmara tão nobre,
Por ver-se mísera e pobre,
Não pode, não quer, não vence.

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Bailarina - Autoria própria

A graciosidade de teus movimentos
Subjuga a gravidade
Ternura que esparge
De teu rosto delgado

Cintila
Em teus passos
Um espaço
Improvável
Imprevisível
Que congela o instante
Infinito e constante
De um movimento
De tuas pernas

Carregas a dor num sorriso
E concedes à platéia
A generosidade de teus joelhos
Mártires delicados

Poetisa dos palcos
A força em teus pés
Lapida versos na ribalta

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

O todo sem parte não é todo - Gregório de Mattos

O todo sem parte não é todo,
A parte sem o todo não é parte,
Mas se a parte o faz todo, sendo parte,
Não se diga que é parte, sendo todo

Em todo sacramento está Deus todo,
E todo assiste inteiro em qualquer parte,
E feito em partes todo em toda parte,
Em qualquer parte sempre fica todo.

O braço de Jesus não seja parte,
Pois que feito Jesus em partes todo,
Assiste cada parte em sua parte.

Não se sabendo parte deste todo,
Um braço que lhe acharam, sendo parte,
Nos disse as partes todas deste todo.

domingo, 16 de outubro de 2011

Resenha, em forma de poema, do livro "Admirável mundo novo", de Aldous Huxley - Autoria própria

No futuro de Ford
Somos todos levados
A pensar e andar
Tal como rebanho
São todos iguais
Os diversos diferentes
Criaturas de uma casta
Que por todos pensa

Na liberdade
Libertinagem
Sexo sem peias
Não há paixão, nem família
Todos filhos do Estado
Antes do berço escolhidos
Designados
Destinos marcados
Tal como gado
de abate

Gens manipulados
Fetos adestrados
Sutil hipnose
A sociedade que se prostra
Mentores do nada
De todos subtraem
A dor, o lamento, a dúvida
A essência da vida

Abole-se a religião
Resta a fé na ciência
Nos dogmas ateus
Nos sacerdotes profanos
Que exorcizam o pudor
E santificam o pecado
Liberdade totalitária
Realidade imaginária

Mas resta uma esperança
Que vive nos selvagens
Na sabedoria do bárbaro
Belo, casto e rebelde
Shakespeare – ainda que morto
É seu mentor amado
Em seus livros o selvagem
Saboreia outras vidas

É dentro desta selvageria
Que reside a civilidade
O amor pela mãe
A paixão pela amada
Num mundo asséptico,
Apenas o selvagem
Reconhece a barbárie

E aqueles que o cercam
Impregnados ficam de selvageria
Revoltam-se contra a estabilidade
De um mundo que desestabiliza
E neles a chama que há
No peito do bárbaro
Agora resplandece forte
Brilhante e valente

A liberdade que eles recebem
Acompanha-os no degredo

O insurreto selvagem
Cansou-se da barbárie
Fugiu do sexo sem culpa
E renegou a paixão
Oferecida
Para o exílio ele foi
Solitário

Mas mesmo a sua solidão
Foi profanada
A civilização insistia
Perseguia o selvagem
E repetiam seus gestos
Mimetizavam a selvageria

Quanto ao pobre selvagem...
Só lhe restava um norte
Só lhe restava uma sorte
Só lhe restava - a morte
No triste mundo admirável

sábado, 15 de outubro de 2011

If – Rudyar Kipling

If you can keep your head when all about you
Are losing theirs and blaming it on you,
If you can trust yourself when all men doubt you
But make allowance for their doubting too,
If you can wait and not be tired by waiting,
Or being lied about, don't deal in lies,
Or being hated, don't give way to hating,
And yet don't look too good, nor talk too wise;

If you can dream--and not make dreams your master,
If you can think--and not make thoughts your aim;
If you can meet with Triumph and Disaster
And treat those two impostors just the same;
If you can bear to hear the truth you've spoken
Twisted by knaves to make a trap for fools,
Or watch the things you gave your life to, broken,
And stoop and build 'em up with worn-out tools;

If you can make one heap of all your winnings
And risk it all on one turn of pitch-and-toss,
And lose, and start again at your beginnings
And never breath a word about your loss;
If you can force your heart and nerve and sinew
To serve your turn long after they are gone,
And so hold on when there is nothing in you
Except the Will which says to them: "Hold on!"

If you can talk with crowds and keep your virtue,
Or walk with kings --nor lose the common touch,
If neither foes nor loving friends can hurt you;
If all men count with you, but none too much,
If you can fill the unforgiving minute
With sixty seconds' worth of distance run,
Yours is the Earth and everything that's in it,
And --which is more-- you'll be a Man, my son!

Se - Tradução livre

Se você consegue manter sua cabeça enquanto todos em volta
Perderam as suas e lhe culpam,
Se você acredita em si mesmo quando todos duvidam
Mas leva em consideração a dúvida alheia;
Se você pode esperar sem desespero
E, quando enganado, não tentar enganar;
Sendo odiado, não dar razão ao ódio
Porém não parecer tão bom, nem tão sábio;

Se você sabe sonhar, sem perder o senso de realidade
Se você pensa – sabendo que pode estar errado;
Se você pode enfrentar o triunfo e o desastre
Tratando estes impostores da mesma forma;
Se é capaz de suportar que a verdade que disse
Seja distorcida para lhe prejudicar;
Ou ver que as coisas que granjeou na vida se despedaçaram,
Ainda conseguir refazê-las com quase nada;

Se você tem coragem de reunir todas suas conquistas
E arriscá-las num único lance;
Se perder, começar tudo de novo
Sem dedicar um único lamento à sua derrota;
Se você é capaz de se devotar de corpo inteiro
Entregando todas as suas energias que lhe restam,
E perseverar ainda que exausto
Quando o que lhe sobra é apenas o desejo que diz: “Nunca desista”;

Se você pode enfrentar a multidão e manter sua virtude,
Ou mesmo com os reis, não deixar de ser como é;
Se os seus melhores ou piores amigos não podem machucá-lo,
Se todos podem contar com você, mas não para tudo;
Se você pode consagrar ao minuto capital
Segundo a segundo, o melhor de si;
Você receberá o mundo e tudo o que há nele
E o melhor, você será um homem honrado, meu filho!

Vencedor - Augusto dos Anjos

Toma as espadas rútilas, guerreiro,
E à rutilância das espadas, toma
A adaga de aço, o gládio de aço, e doma
Meu coração — estranho carniceiro!


Não podes?! Chama então presto o primeiro
E o mais possante gladiador de Roma.
E qual mais pronto, e qual mais presto assoma,
Nenhum pode domar o prisioneiro.


Meu coração triunfava nas arenas.
Veio depois de um domador de hienas
E outro mais, e, por fim, veio um atleta,


Vieram todos, por fim; ao todo, uns cem...
E não pude domá-lo, enfim, ninguém,
Que ninguém doma um coração de poeta!

Vencido - Augusto dos Anjos

No auge de atordoadora e ávida sanha
Leu tudo, desde o mais prístino mito,
Por exemplo: o do boi Ápis do Egito
Ao velho Niebelungen da Alemanha.


Acometido de uma febre estranha
Sem o escândalo fônico de um grito,
Mergulhou a cabeça no Infinito,
Arrancou os cabelos na montanha!


Desceu depois à gleba mais bastarda,
Pondo a áurea insígnia heráldica da farda
A vontade do vômito plebeu...


E ao vir-lhe o cuspo diário à boca fria
O vencido pensava que cuspia
Na célula infeliz de onde nasceu.

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

A fuga da epifania - Autoria própria


Tateando as palavras
                Lavrei frases soltas
Perdido como quem procura
                               A solução do mundo
               
 Súbito, deparei-me
                               Com a senha de todos os segredos
                Debaixo de um rochedo
                                                               De reminiscências          

                               Um caleidoscópio de engenhos
                                                Latejava
                                               Pulsava
                                               Vibrava
                               Sem que se houvesse tempo
                                               Para o garimpo

                A quintessência dos sonhos
                               Os mapas de constelações inacessíveis
                Tudo estava próximo
                Mas fugia           
Como um feitiço
                               Desperdiçado
               
                O maremoto não preencheu
                               Os sulcos das perplexidades

                Foi-se o turbilhão
                                Restou-me
                Um buquê de versos

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Aniversário - Fernando Pessoa (Álvaro de Campos)

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.

Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
O que fui de coração e parentesco.
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o acho...)
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas
lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!

Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,
O aparador com muitas coisas — doces, frutas o resto na sombra debaixo do alçado —,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...

Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...