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quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Soneto da Separação – Vinícius de Moraes

De repente do riso fez-se o pranto
Silencioso e branco como a bruma
E das bocas unidas fez-se a espuma
E das mãos espalmadas fez-se o espanto.

De repente da calma fez-se o vento
Que dos olhos desfez a última chama
E da paixão fez-se o pressentimento
E do momento imóvel fez-se o drama.

De repente, não mais que de repente
Fez-se de triste o que se fez amante
E de sozinho o que se fez contente.

Fez-se do amigo próximo o distante
Fez-se da vida uma aventura errante
De repente, não mais que de repente.

terça-feira, 29 de novembro de 2011

O malabarista - Autoria própria

Sustentas-te entre dois perigos
Esquivando-te de duas intrigas
E da disputa entre teus inimigos
Resulta o espaço que ocupas

A distância que te afasta do chão
Abriga o encantamento de tenras idades
No permanente desafio à perversidade
Da queda
Relembras o pecado original
Que afastou Adão do Paraíso

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Retrato de escritor - João Cabral de Melo Neto

Insolúvel: na água quente e na fria;
nas de furar a pedra ou nas langues;
nas águas lavadeiras; até nos alcoóis
que dissolvem o desdém mais diamante.
Insolúvel: por muito o dissolvente;
igual, nas gotas dum pranto ao lado,
e nas águas do banho que o submerge,
em beatitude, e de que emerge ingasto.

Solúvel: em toda tinta de escrever,
o mais simples de seus dissolventes;
primeiramente, na da caneta-tinteiro
com que ele se escreve dele, sempre
(manuscrito, até em carta se abranda,
em pedra-sabão, seu diamante primo);
solúvel, mais tarde ele se passa a limpo
o que ele se escreveu da dor indonésia
lida no Rio, num telegrama do Egito
(datiloscrito, já se acaramela muito
seu diamante em pessoa, pré-escrito).

Solúvel, todo: na tinta, embora sólida,
da rotativa, manando seu auto-escrito
(impresso, e tanto em livro-cisterna
ou jornal-rio, seu diamante é líquido).

domingo, 27 de novembro de 2011

Cama - Autoria própria

Gosto de lhe ver
Coberta de lençóis
Despida de maquiagens
E máscaras

Gosto de lhe ver desprevenida
Solta como aurora na praia
Riso de pluma descerrando a face

Gosto quando você não me pergunta
O que já sabe

Gosto quando você me pergunta
O que já sabe

Gosto quando seus olhos
Desmentem sua boca

Gosto de quando você parte
Passos com pressa de ficar
E zangamento de menina

sábado, 26 de novembro de 2011

Tecendo a manhã - João Cabral de Melo Neto

1

Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.

2

E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

A arquitetura de uma mentira (o poema sem lirismo, ou o poema-prosa) - Autoria própria

Capture o que é mais íntimo no seu interlocutor
O objeto pelo qual ele daria (ou perderia) o mundo
Coloque-o ao seu alcance

Acrescente escamas de verossimilhança
Palavras e gestos grandiloquentes
E um mise en scène de indignação, se houver poeira de desconfiança

Enrondillhe-o com seus mais profundos propósitos ou medos
Deixe-os à vista na mesa

A estória não precisa ser bonita
Precisa dos fragmentos da verdade
Ligeiramente reordenados

Acrescente a isto tudo a convicção em toda a sua amplidão
Acredite no que você não acredita
Credite isto tudo a um bem maior

Pronto!

Você já possui uma mentira para oferecer a quem quer que seja

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Os sapos - Manuel Bandeira

Enfunando os papos,
Saem da penumbra,
Aos pulos, os sapos.
A luz os deslumbra.


Em ronco que aterra,
Berra o sapo-boi:
— "Meu pai foi à guerra!"
— "Não foi!" — "Foi!" — "Não foi!".


O sapo-tanoeiro,
Parnasiano aguado,
Diz: — "Meu cancioneiro
É bem martelado.


Vede como primo
Em comer os hiatos!
Que arte! E nunca rimo
Os termos cognatos!


O meu verso é bom
Frumento sem joio
Faço rimas com
Consoantes de apoio.


Vai por cinqüenta anos
Que lhes dei a norma:
Reduzi sem danos
A formas a forma.


Clame a saparia
Em críticas céticas:
Não há mais poesia,
Mas há artes poéticas . . ."


Urra o sapo-boi:
— "Meu pai foi rei" — "Foi!"
— "Não foi!" — "Foi!" — "Não foi!"


Brada em um assomo
O sapo-tanoeiro:
— "A grande arte é como
Lavor de joalheiro.


Ou bem de estatuário.
Tudo quanto é belo,
Tudo quanto é vário,
Canta no martelo."


Outros, sapos-pipas
(Um mal em si cabe),
Falam pelas tripas:
— "Sei!" — "Não sabe!" — "Sabe!".


Longe dessa grita,
Lá onde mais densa
A noite infinita
Verte a sombra imensa;


Lá, fugindo ao mundo,
Sem glória, sem fé,
No perau profundo
E solitário, é


Que soluças tu,
Transido de frio,
Sapo-cururu
Da beira do rio

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Poema I - Autoria própria

Nem tudo o que é preciso
É possível

Nem tudo o que é possível
É querido

A rima
Cifrada

O verso
No anverso
Do poema
Perdido

Palavras
Paisagem

Procura
O poeta
Perder
O que achou

Gramática
Prisão

O verso
No cio
Flerta
A poesia
Que se despiu
Da Rima
Mas não
Ficou prosa

Inspiração e
Poesia

Fragmentos de
Realidade
Refletidos
Na miragem

Confessionário
Verso

Envelheci
Envileci
Na bigorna
E no martelo
Forjo
O cristal

Poeta
Engodo

Perdeu-se
No caminho
E lá
Para sempre
Foi deixado

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Pneumotórax – Manuel Bandeira

Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos.
A vida inteira que podia ter sido e que não foi.
Tosse, tosse, tosse.


Mandou chamar o médico:
— Diga trinta e três.
— Trinta e três . . . trinta e três . . . trinta e três . . .
— Respire.

— O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado.
— Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?
— Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

A desconhecida - Autoria própria

O beijo antecipou-se
À chegada do nome
As línguas se conheceram
Antes de serem conhecidos
Seus idiomas

Há um instinto
Que instila
Insinua-se
Pelas mãos
Censuradas

Conversam os seus poros
Miscigenam-se seus sabores
Confundem-se os suores
E corpos

Súbito, escapam palavras
O prefácio atrasado
Do romance rasurado
Iniciado e acabado.
Tornou-se
Revista semanal.

domingo, 20 de novembro de 2011

Vejo a aurora surgir - Augusto Frederico Schmidt

Vejo a aurora surgir nesses teus olhos
Ainda há pouco tão tristes e sombrios.
Vejo as primeiras luzes matutinas
Nascendo, aos poucos, nos teus grandes olhos!



Vejo a deusa triunfal chegar serena,
Vejo o seu corpo nu, radioso e claro,
Vir crescendo em beleza e suavidade
Nas longínquas paragens dos teus olhos.



E estendo as minhas mãos tristes e pobres
Para tocar a imagem misteriosa
Desse dia que vem, em ti, raiando;



E sinto as minhas mãos, ó doce amada,
Molhadas pelo orvalho que roreja
Do teu olhar de estranhas claridades!

sábado, 19 de novembro de 2011

O beija-flor - Autoria própria

Havia um poema bloqueado
Tal qual artéria entupida
Ele ali estava, mas não vinha
Para o papel

E o poeta pede ajuda
Consulta o dicionário
Rilke e Camões
Sócrates e Homero

Eis que chega um beija-flor
Com uma rosa em seu bico
E, no seu desprendimento,
Empresta a rosa ao poema

O beija-flor, quando se vai
Arrasta em suas asas
A mesquinhez que bloqueava
A inspiração do poeta

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Poema - Augusto Frederico Schmidt

Encontraremos o amor depois que um de nós abandonar
os brinquedos.
Encontraremos o amor depois que nos tivermos despedido
E caminharmos separados pelos caminhos.

Então ele passará por nós,
E terá a figura de um velho trôpego,
Ou mesmo de um cão abandonado,

O amor é uma iluminação, e está em nós, contido em nós,
E são sinais indiferentes e próximos que os acordam do
seu sono subitamente.

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Polir - Autoria própria

Polir a palavra
Para que o pólen da poesia
Floresça num enigma
Desnudo pela primeira vez
Com suas nervuras expostas
Multifacetadas perspectivas
Sem ponto final

Polir o verso
Para que a rima baile
No ritmo com ou sem
Metro

Polir o poema
Para conduzir a palavra à província
Que trespassa seu significado
Passando estranhamento
E encanto

Polir o poeta
Para que ele se aproxime
Do indizível
Assistindo a gestação
De uma
Descoberta

Timidez - Cecília Meirelles

Basta-me um pequeno gesto,
feito de longe e de leve,
para que venhas comigo
e eu para sempre te leve...


— mas só esse eu não farei.


Uma palavra caída
das montanhas dos instantes
desmancha todos os mares
e une as terras mais distantes...


— palavra que não direi.


Para que tu me adivinhes,
entre os ventos taciturnos,
apago meus pensamentos,
ponho vestidos noturnos,


— que amargamente inventei.


E, enquanto não me descobres,
os mundos vão navegando
nos ares certos do tempo,
até não se sabe quando...


— e um dia me acabarei.

terça-feira, 15 de novembro de 2011

Por que lhe quero tanto se não lhe quero - Autoria própria

Por que lhe quero tanto se não lhe quero
Desde a última vez que me decepcionou
Se decepcionado estou, e sou sincero
Não quereria querer quem me abandonou

Por que lhe espero tanto se não lhe espero
Se quando me esperava você não ficou
Quando cheguei, restou-me o mero
Sabor de quem sabia o que provocou

Por que a esperança no desespero
Se de tanto aguardar tal efeméride
Nada mais quero, nada mais espero

Por que você me olha se não me vê?
Para me manter como um satélite
Que orbita em sua volta sem saber o porquê

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

4o. Motivo da rosa - Cecília Meirelles

Não te aflijas com a pétala que voa:
também é ser, deixar de ser assim.


Rosas verá, só de cinzas franzida,
mortas, intactas pelo teu jardim.


Eu deixo aroma até nos meus espinhos
ao longe, o vento vai falando de mim.


E por perder-me é que vão me lembrando,
por desfolhar-me é que não tenho fim.

domingo, 13 de novembro de 2011

Livro "A triste história do Ìndio Juca" - Autoria própria - Capítulo X - Completo

A vergonha dormia numa mansarda
Dormia mas respirava, só esperando
Tarda e tanto maior tanto era mais tarda
Com um crepúsculo em seu cio crepitando
Sucedeu-se enfim. Já não mais se aguarda
Aquém-mar, a preamar do ódio chegando
Num momento de crise, uma cria a criar-se
Concede à sede ensejo de saciar-se


Vive e vem à lembrança a antiga glória
Inda viva nas covas dos tombados
No passado que vinca da marmórea
Granja que há no lamento dos pejados
A verdade, sua história, o mito, a estória
Não mais são discerníveis. Mestiçados
Como grãos derrubados no terreno
A colheita que traz trigo e veneno


Ressoa seco o oco dessa época de ouro
Mundo frustro de todas lendas lindas
Todo fausto que lhes falta, o desdouro
O destino desviado na sua vinda
Uma guerra, a derrota, o duradouro
Fim sem fim. E a desonra que dura ainda
E o frescor da desonra só se amansa
Na vindoura ganância de matança

Na masmorra da noite, uma apoteose
Prepara-se para sair. Assobia o vento
O prelúdio da sorte sob as doze
Casas de astros que trazem luz ao repto
E constela-se a selva na psicose
Duma infinda e profunda raiva. Inquieto,
O silêncio surpreende a noite e o luar
Com sua viva vontade de matar


Toda a sombra é só ódio. Uma vaga
De guerreiros caminha em passos tensos
Como quem marcha para a grande saga
Tesas faces no escuro, olhos intensos
A vontade que afasta o medo, e afaga
O desejo espalhado em mil incensos
Um desígnio, um propósito inflamável
Finalmente inflamado, enfim findável


Diante da legião, rugas e mais raiva
O ódio na senectude destilado
Debilitado corpo que a ira aviva
O derrotado espírito alforriado
Feito líder da tensa comitiva
Suas mãos vibram na aura áurea do que é azado
Na sua boca, um discurso para a coorte
Ramos de rimas que clamavam morte


“Povo guerreiro, sede fortes, sede
A morte que levais hoje, em secreto
Na vingança essa sede tem sua sede
Vingareis vossos mortos, é o decreto
Só com sangue a vingança cessa, cede
O sangue trará a honra, vos prometo
O túmulo dos vossos avós mortos
Força vos deu e dará nos desconfortos”


A tensão cresce e clama por avanço
A emoção bruta luta, quer soltar-se
A aflição vem, reclama sem descanso
Floração de ódio, a chama quer jactar-se
Contenção astuta, o instante do antes, manso
A canção. Surge o ensejo para inflamar-se
A ocasião, o foco, a raiva, só vingança
Sensação, força, a cólera, eis a herança


Passos. Dança marcial. Solo rival
Tezes tensas. Torpezas medram. Medo.
Susto. Donde surgiram? De onde é o mal?
Sofrimento. Lamentos. Tino bêbedo.
Resistência. Não há. É desigual.
Sorri a morte. Portal. Hora do credo.
(Crer na crença nessa hora derradeira
O temor - ter errado a vida inteira)


Já tecido o fim, tece-se os detalhes
Para mostrar o completo esgotamento
Dessa aldeia, que derruiu tal qual Versalhes
Palmo a palmo expugnada no caimento
Dos seus últimos filhos. Os retalhes
De sua glória e da história, o passamento.
Mas o real está bem além da lavra
Das fronteiras da força da palavra

sábado, 12 de novembro de 2011

Áporo – Carlos Drummond de Andrade

Um inseto cava
cava sem alarme
perfurando a terra
sem achar escape.

Que fazer, exausto,
em país bloqueado,
enlace de noite
raiz e minério?

Eis que o labirinto
(oh razão, mistério)
presto se desata:

em verde, sozinha,
antieuclidiana,
uma orquídea forma-se.

Destruição - Carlos Drummond de Andrade

Os amantes se amam cruelmente
e com se amarem tanto não se vêem.
Um se beija no outro, refletido.
Dois amantes que são? Dois inimigos.

Amantes são meninos estragados
pelo mimo de amar: e não percebem
quanto se pulverizam no enlaçar-se,
e como o que era mundo volve a nada.

Nada. Ninguém. Amor, puro fantasma
que os passeia de leve, assim a cobra
se imprime na lembrança de seu trilho.

E eles quedam mordidos para sempre.
deixaram de existir, mas o existido
continua a doer eternamente.

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Livro "A triste história do Ìndio Juca" - Autoria própria - Capítulo X - continuação (iii)

(...)

“Povo guerreiro, sede fortes, sede
A morte que levais hoje, em secreto
Na vingança essa sede tem sua sede
Vingareis vossos mortos, é o decreto
Só com sangue a vingança cessa, cede
O sangue trará a honra, vos prometo
O túmulo dos vossos avós mortos
Força vos deu e dará nos desconfortos”


A tensão cresce e clama por avanço
A emoção bruta luta, quer soltar-se
A aflição vem, reclama sem descanso
Floração de ódio, a chama quer jactar-se
Contenção astuta, o instante do antes, manso
A canção. Surge o ensejo para inflamar-se
A ocasião, o foco, a raiva, só vingança
Sensação, força, a cólera, eis a herança

Continua (...)

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

A máquina do mundo - Carlos Drummond de Andrade

E como eu palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco

se misturasse ao som de meus sapatos
que era pausado e seco; e aves pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretas

lentamente se fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,

a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.

Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável

pelas pupilas gastas na inspeção
contínua e dolorosa do deserto,
e pela mente exausta de mentar

toda uma realidade que transcende
a própria imagem sua debuxada
no rosto do mistério, nos abismos.

Abriu-se em calma pura, e convidando
quantos sentidos e intuições restavam
a quem de os ter usado os já perdera

e nem desejaria recobrá-los,
se em vão e para sempre repetimos
os mesmos sem roteiro tristes périplos,

convidando-os a todos, em coorte,
a se aplicarem sobre o pasto inédito
da natureza mítica das coisas,

assim me disse, embora voz alguma
ou sopro ou eco ou simples percussão
atestasse que alguém, sobre a montanha,

a outro alguém, noturno e miserável,
em colóquio se estava dirigindo:
"O que procuraste em ti ou fora de

teu ser restrito e nunca se mostrou,
mesmo afetando dar-se ou se rendendo,
e a cada instante mais se retraindo,

olha, repara, ausculta: essa riqueza
sobrante a toda pérola, essa ciência
sublime e formidável, mas hermética,

essa total explicação da vida,
esse nexo primeiro e singular,
que nem concebes mais, pois tão esquivo

se revelou ante a pesquisa ardente
em que te consumiste... vê, contempla,
abre teu peito para agasalhá-lo.”

As mais soberbas pontes e edifícios,
o que nas oficinas se elabora,
o que pensado foi e logo atinge

distância superior ao pensamento,
os recursos da terra dominados,
e as paixões e os impulsos e os tormentos

e tudo que define o ser terrestre
ou se prolonga até nos animais
e chega às plantas para se embeber

no sono rancoroso dos minérios,
dá volta ao mundo e torna a se engolfar,
na estranha ordem geométrica de tudo,

e o absurdo original e seus enigmas,
suas verdades altas mais que todos
monumentos erguidos à verdade:

e a memória dos deuses, e o solene
sentimento de morte, que floresce
no caule da existência mais gloriosa,

tudo se apresentou nesse relance
e me chamou para seu reino augusto,
afinal submetido à vista humana.

Mas, como eu relutasse em responder
a tal apelo assim maravilhoso,
pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,

a esperança mais mínima — esse anelo
de ver desvanecida a treva espessa
que entre os raios do sol inda se filtra;

como defuntas crenças convocadas
presto e fremente não se produzissem
a de novo tingir a neutra face

que vou pelos caminhos demonstrando,
e como se outro ser, não mais aquele
habitante de mim há tantos anos,

passasse a comandar minha vontade
que, já de si volúvel, se cerrava
semelhante a essas flores reticentes

em si mesmas abertas e fechadas;
como se um dom tardio já não fora
apetecível, antes despiciendo,

baixei os olhos, incurioso, lasso,
desdenhando colher a coisa oferta
que se abria gratuita a meu engenho.

A treva mais estrita já pousara
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida,

se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera,
seguia vagaroso, de mãos pensas.

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Livro "A triste história do Ìndio Juca" - Autoria própria - Capítulo X - continuação (ii)

(...)
Toda a sombra é só ódio. Uma vaga
De guerreiros caminha em passos tensos
Como quem marcha para a grande saga
Tesas faces no escuro, olhos intensos
A vontade que afasta o medo, e afaga
O desejo espalhado em mil incensos
Um desígnio, um propósito inflamável
Finalmente inflamado, enfim findável


Diante da legião, rugas e mais raiva
O ódio na senectude destilado
Debilitado corpo que a ira aviva
O derrotado espírito alforriado
Feito líder da tensa comitiva
Suas mãos vibram na aura áurea do que é azado
Na sua boca, um discurso para a coorte
Ramos de rimas que clamavam morte

Continua (...)

terça-feira, 8 de novembro de 2011

Quando eu morrer eu quero ficar - Mário de Andrade

Quando eu morrer quero ficar,
Não contem aos meus inimigos,
Sepultado em minha cidade,
Saudade.

Meus pés enterrem na rua Aurora,
No Paissandu deixem meu sexo,
Na Lopes Chaves a cabeça
Esqueçam.

No Pátio do Colégio afundem
O meu coração paulistano:
Um coração vivo e um defunto
Bem juntos.

Escondam no Correio o ouvido
Direito, o esquerdo nos Telégrafos,
Quero saber da vida alheia,
Sereia.

O nariz guardem nos rosais,
A língua no alto do Ipiranga
Para cantar a liberdade.
Saudade…

Os olhos lá no Jaraguá
Assistirão ao que há de vir,
O joelho na Universidade,
Saudade…

As mãos atirem por aí,
Que desvivam como viveram,
As tripas atirem pro Diabo,
Que o espírito será de Deus.
Adeus.

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Livro A triste história do índio Juca - Capítulo X - Continuação I - Autoria própria

(...)

Ressoa seco o oco dessa época de ouro
Mundo frustro de todas lendas lindas
Todo fausto que lhes falta, o desdouro
O destino desviado na sua vinda
Uma guerra, a derrota, o duradouro
Fim sem fim. E a desonra que dura ainda
E o frescor da desonra só se amansa
Na vindoura ganância de matança

Na masmorra da noite, uma apoteose
Prepara-se para sair. Assobia o vento
O prelúdio da sorte sob as doze
Casas de astros que trazem luz ao repto
E constela-se a selva na psicose
Duma infinda e profunda raiva. Inquieto,
O silêncio surpreende a noite e o luar
Com sua viva vontade de matar

Continua (...)

Aceitarás o amor como eu o encaro ?... - Mário de Andrade

Aceitarás o amor como eu o encaro ?...
...Azul bem leve, um nimbo, suavemente
Guarda-te a imagem, como um anteparo
Contra estes móveis de banal presente.


Tudo o que há de melhor e de mais raro
Vive em teu corpo nu de adolescente,
A perna assim jogada e o braço, o claro
Olhar preso no meu, perdidamente.


Não exijas mais nada. Não desejo
Também mais nada, só te olhar, enquanto
A realidade é simples, e isto apenas.


Que grandeza... a evasão total do pejo
Que nasce das imperfeições. O encanto
Que nasce das adorações serenas.

domingo, 6 de novembro de 2011

Livro "A triste história do Índio Juca" - Autoria própria - Capítulo X - início

A vergonha dormia numa mansarda
Dormia mas respirava, só esperando
Tarda e tanto maior tanto era mais tarda
Com um crepúsculo em seu cio crepitando
Sucedeu-se enfim. Já não mais se aguarda
Aquém-mar, a preamar do ódio chegando
Num momento de crise, uma cria a criar-se
Concede à sede ensejo de saciar-se


Vive e vem à lembrança a antiga glória
Inda viva nas covas dos tombados
No passado que vinca da marmórea
Granja que há no lamento dos pejados
A verdade, sua história, o mito, a estória
Não mais são discerníveis. Mestiçados
Como grãos derrubados no terreno
A colheita que traz trigo e veneno

Continua (...)

A cartomante - Autoria própria

Oh, senhora de todos sortilégios
Conheces o passado e ainda o futuro
Tens em tuas cartas todos os desejos
A certeza num mundo que é inseguro

Àqueles que te pagam, privilégios
Àqueles que duvidam, esconjuro
Alteras o destino com seu régio
Aviso do perigo nascituro

Mas se em tua verve não se tem valor
Se for tudo mentira o que tu dizes
Se nada sabes mas finges saber

Como saber se enganas sem pudor
Àquele que ouve a tudo o que tu dizes
Se fazes isto, quem vai te deter?

sábado, 5 de novembro de 2011

Proposição das rimas do poeta – Manuel Maria Barbosa du Bocage

Incultas produções da mocidade
Exponho a vossos olhos, ó leitores:
Vede-as com mágoa, vede-as com piedade,
Que elas buscam piedade, e não louvores:

Ponderai da Fortuna a variedade
Nos meus suspiros, lágrimas e amores;
Notai dos males seus a imensidade,
A curta duração de seus favores:

E se entre versos mil de sentimento
Encontrardes alguns cuja aparência
Indique festival contentamento,

Crede, ó mortais, que foram com violência
Escritos pela mão do Fingimento,
Cantados pela voz da Dependência.

Ciúme - Autoria própria

Oh monstro! Atormentaste ao mouro Otelo
Desdêmona morreu. Foi por tua causa
O mouro general não aguentou tê-lo
E no fim ele a si mesmo se acusa

Dom Casmurro sofreu o mesmo flagelo
Um dia viu Capitu como medusa
E o pior de tudo neste desmazelo
É padecer com tal certeza obtusa

O monstro de olhos verdes, e furioso
Insinua-se no olhar mesmo inocente
Miragem que se vê e então de repente

Torna-se real, mais ainda que a verdade
Na chegada não tem solenidade
Na partida, deixa um rastro impiedoso

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

O ciúme - Manuel Maria Barbosa du Bocage

Entre as tartáreas forjas, sempre acesas,
Jaz aos pés do tremendo, estígio nume,
O carrancudo, o rábido Ciúme,
Ensanguentadas as corruptas presas.

Traçando o plano de cruéis empresas,
Fervendo em ondas de sulfúreo lume,
Vibra das fauces o letal cardume
De hórridos males, de hórridas tristezas.

Pelas terríveis Fúrias instigado,
Lá sai do Inferno, e para mim se avança
O negro monstro, de áspides toucado.

Olhos em brasa de revés me lança;
Oh dor! Oh raiva! Oh morte!... Ei-lo a meu lado
Ferrando as garras na vipérea trança.

Saudade - Autoria própria

Dá-se um passo na estrada que se espreme
Passa-se o rumo e o sumo que o suporta
Mira no que antepassa, a estada morta
Como nau que se espaça do seu leme

Quanto mais se afasta, mais se espreme
Quanto mais se apaga, mais se exorta
Quanto mais se perde, mais se comporta
Rio que só se alonga, por mais que se reme

De olhos fechados, vê-se o hoje de outrora
A flor arrancada é a que mais aflora
Esse ontem que perdura agora e sempre

Foi-se ontem, mas ficou em perene aurora
O antes que é mais presente do que o agora
Eterno, sempiterno, para sempre

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Os versos que te fiz – Florbela Espanca

Deixa dizer-te os lindos versos raros
Que a minha boca tem pra te dizer !
São talhados em mármore de Paros
Cinzelados por mim pra te oferecer.


Têm dolência de veludos caros,
São como sedas pálidas a arder ...
Deixa dizer-te os lindos versos raros
Que foram feitos pra te endoidecer !


Mas, meu Amor, eu não tos digo ainda ...
Que a boca da mulher é sempre linda
Se dentro guarda um verso que não diz !


Amo-te tanto ! E nunca te beijei ...
E nesse beijo, Amor, que eu te não dei
Guardo os versos mais lindos que te fiz!