(...) Se vossos feitos foram romanos, consolai-vos com Catão, que não teve estátua no Capitólio. Vinham os estrangeiros a Roma, viam as estátuas daqueles varões famosos, e perguntavam pela de Catão. Esta pergunta era a maior estátua de todas. Aos outros pôs-lhes estátua o senado, a Catão o mundo. Deixai perguntar ao mundo e admirar-se de vos não ver premiado. Essa pergunta e essa admiração é o maior e melhor de todos os prêmios. O que vos deu a virtude, não vo-lo pode tirar a inveja; o que vos deu a fama, não vo-lo pode tirar a ingratidão. Deixai-os ser ingratos, para que vós sejais mais glorioso. Um grande merecimento sobre uma grande ingratidão fica muito mais subido. Se não houvesse ingratidões, como haveria finezas? Não deis logo queixas ao desagradecimento: dai-lhe graças.
Dir-me-eis que vedes diferentemente premiados os que fizeram menos, ou não fizeram nada. Dor verdadeiramente grande! Já disse uma rainha de Castela que os seus serviam como vassalos, os nossos como filhos. E não pode deixar de ser grande escândalo do amor e grande monstruosidade da natureza, que fossem uns os filhos, e sejam outros os herdeiros. Mas essa mesma injustiça vos deve servir de consolação. Se o mundo e o tempo fora tão justo que distribuíra os prêmios pela medida do merecimento, então tínheis muita razão de queixa, porque vos faltava o testemunho da virtude para que os mesmos prêmios foram instituídos. Mas quando as mercês não são prova de ser homem, senão de ter homem, e quando não significam valor, senão valia, pouca injúria se faz a quem se não fazem. Dizia com verdadeiro juízo Marco Túlio, que as mercês feitas a indignos não honram os homens, afrontam as honras. E assim é. As comendas em semelhantes peitos não são cruz, são aspa, e quando se vêem tantos ensambenitados da honra, bem vos podeis honrar de não ser um deles. Sejam esses embora exemplos da fortuna, sede-o vós da virtude: virtutem ex me, fortunam ex aliis.
Finalmente se os homens vos são ingratos, não sejais vós ingrato a Deus. Se os reis vos não dão o que podem, contentai-vos com que vos deu Deus, o que não podem dar os reis. Os reis podem dar títulos, rendas, estados; mas ânimo, valor, fortaleza, constância, desprezo da vida, e outras virtudes de que se compõe a verdadeira honra, não podem. Se Deus vos fez estas mercês, fazei pouco-caso das outras, que nenhuma vale o que custa Sobretudo lembre-se o capitão e soldado famoso de quantos companheiros perdeu e morreram nas mesmas batalhas e não se queixam. Os que morreram fizeram a maior fineza, porque deram a vida por quem lha não pode dar. E quem por mercê de Deus ficou vitorioso e vivo, como se queixará de maldespachado? Se não beijastes a mão real pelas mercês que vos não fez, beijai a mão da vossa espada que vos fez digno delas. Olhe o rei para vós como para um perpétuo credor, e gloriai-vos de que se não possa negar de devedor vosso o que é senhor de tudo. Se tivestes ânimo para dar o sangue e arriscar a vida, mostrai que também vos não falta para o sofrimento. Então batalhastes com os inimigos; agora é tempo de vos vencer a vós. Se o soldado se vê despido, folgue de descobrir as feridas e de envergonhar com elas a pátria por quem as recebeu. Se depois de tantas cavalerias se vê a pé, tenha esta pela mais ilustre carroça de seus triunfos. E se assim se vê morrer à fome, deixe-se morrer, e vingue-se. Perdê-lo-á quem o não sustenta, e perderá outros muitos com esse desengano. Não faltará quem diga por ele: Quanti mercenarii abundant panibus, ego outem hic fame pereo! E este ingrato e escandaloso epitáfio será para sua memória muito maior e mais honrada comenda de quantas podem dar os que as dão em uma e muitas vidas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário