Total de visualizações de página

domingo, 15 de abril de 2012

A fumaça - Autoria própria

Plantei
Um viveiro de metáforas
Para conter
uma erupção
em minh´alma

Nenhum verso
Sobreviveu
ao toque incandescente
da minha solidão

Nenhuma palavra
vestiu a
realidade desnuda
que passeava diante todos
sem escandalizar
quem quer que fosse

Um caldeirão de desassossegos
foi derramado
sobre o istmo
da verdade

E o lirismo
é a fumaça
daquilo que não pôde
ser dito

sexta-feira, 6 de abril de 2012

Catilina - Autoria própria

Por que arrotas este maremoto de moralidade
Se são rotos os teus passos?

As rotinas de fuga de tua fama
Estão secas, saberás logo

Nas espigas de ódio que plantaste
Perigaste teu próprio sangue

O esgoto te espera. As tuas rotas
Têm fezes que regarão teu nome

sábado, 31 de março de 2012

Epitáfio - Autoria própria

Alcançaste silencioso como um sopro
Dizendo nada além de um não respiro
Entraste noutro prado sem sair
Uma vez mais para se despedir
Saudade

Pediste apenas para dormir
Adeuses, nem pensar
Ida que fica fincada no sempre

quinta-feira, 29 de março de 2012

A onda - autoria própria

A sua revolta nasce
Da sua vida
Que rebentou
Súbito

Não teve berço
Nem mãe
É uma ruga nascida
Na face do mar

A sua breve vida
É agitada
Influenciada pelo vento
Pela lua
Segue o destino
Que lhe reservaram

E vai seguindo
Rapidamente, indiferente
Sem receber
Sequer um nome

Mas quando chega
Ao seu destino
Quando desembarca
Arrebenta
E grita!
Jamais lhe ouvirão novamente

domingo, 25 de março de 2012

Dados - Autoria própria

Os dados que se chocam
Reinam e decidem no cassino
As suas faces demarcarão
O destino

São fingidos, e não se sabe
Qual de suas faces é verdadeira
Mentem, enganam, dizem que são três
Escondendo o seis que também são

Dados que adulam
Senhores dos sortilégios
Prometem
Insinuam-se para muitos
Mas apenas poucos recebem
Privilégios

quinta-feira, 22 de março de 2012

Escuro - Autoria própria

No escuro se sente
A importância da claridade
Procura-se um facho de luz
Que corrompa a escuridão

E então se vê algo
No intervalo do escuro
Passo a passo, segue-se a trilha
Enquanto a passada é cercada
Por um universo de incertezas

O passo prenuncia
O próximo que não conhece
Um dia, ele lhe será apresentado
Como o prometido da donzela
Não há como dizer não
Não há como lhe negar o bastão
Passo a passo, vem se andando
Na escuridão

E vendo o escuro
Que ameaça, mas protege
Sente-se o passo mais seguro
Com a pouca luz que lhe foi dada

terça-feira, 20 de março de 2012

Sonteilho do falso Fernando Pessoa - Carlos Drummond de Andrade

Onde nasci, morri.
Onde morri, existo.
E das peles que visto
muitas há que não vi.

Sem mim como sem ti
posso durar. Desisto
de tudo quanto é misto
e que odiei ou senti.

Nem Fausto nem Mefisto,
à deusa que se ri
deste nosso oaristo,

eis-me a dizer: assisto
além, nenhum, aqui,
mas não sou eu, nem isto.

domingo, 18 de março de 2012

Dom Quixote - Autoria própria

E Quixote partiu. Seguiu sem medo.
Orgulhoso exibiu a louca virtude
Co´a virtude soltou os que estavam presos
Dos libertos, só vieram rudes pedras
E o cavaleiro altivo e dissonante
Continuou a caminhada, viu um gigante
Desmascarou o moinho, sutil perigo
O amigo Sancho Pança então estranhou
Via apenas o que os olhos lhe mostravam
E não compreendeu o móbil do combate

Porém, o cavaleiro extemporâneo
Não desistiu. Seguiu. Pois logo adiante
Esperava-lhe a bela Dulcinéia
Cujos encantos só um nobre sentia
Beleza que se esconde até do espelho
Mas que não se apodrece pela carne
E o cavaleiro encontra outro serôdio
Cavaleiro que o vence no caminho
Mas sua triste figura ainda está firme
Vive em livros e em sonhos o herói errante

sábado, 17 de março de 2012

Ubiquidade - Manuel Bandeira

Estás em tudo que penso,
Estás em quanto imagino:
Estás no horizonte imenso,
Estás no grão pequenino.

Estás na ovelha que pasce,
Estás no rio que corre:
Estás em tudo que nasce,
Estás em tudo que morre.

Em tudo estás, nem repousas,
Ó ser tão mesmo e diverso!
(Eras no início das cousas,
Serás no fim do universo.)

Estás na alma e nos sentidos.
Estás no espírito, estás
Na letra, e, os tempos cumpridos,
No céu, no céu estarás.

quarta-feira, 14 de março de 2012

Jazigo - Autoria própria

Jaz em mim
Um ser já sido

Sou refém enfim
Por tê-lo perdido

E o tenho assim
Distante e comigo

(De passo em passo
Perde-se a passada
A consumida estrada
O tempo escasso
O passo crasso
O presente devasso
Sempre o mesmo
Sempre a esmo
Sem estada
Sem a hora azada)

Ele e eu, Abel e Caim
Num mesmo abrigo

Fui eu o seu fim
Vivo no seu jazigo

terça-feira, 13 de março de 2012

Poema de sete faces - Carlos Drummond de Andrade

Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.

O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.

O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do -bigode,

Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.

Mundo mundo vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.

Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.

domingo, 11 de março de 2012

A nuvem - Autoria própria

A nuvem que esbraveja e chora
Na hora de sua ribalta, consome-se em fúria
Esconde o horizonte sob a asa escura
No âmago de sua força, remota ternura

Em cada gota, um pedaço de si
Um sopro que sai de sua arquitetura
A célula que decai e decompõe a sombra
O batismo da argila no renascimento da água

sábado, 10 de março de 2012

Ontem o pregador - Alberto Caeiro (pseudônimo de Fernando Pessoa)

Ontem o pregador de verdades dele
Falou outra vez comigo.
Falou do sofrimento das classes que trabalham
(Não do das pessoas que sofrem, que é afinal quem sofre).
Falou da injustiça de uns terem dinheiro,
E de outros terem fome, que não sei se é fome de comer.
Ou se é só fome da sobremesa alheia.
Falou de tudo quanto pudesse faze-lo zangar-se.

Que feliz deve ser quem pode pensar na infelicidade dos outros!
Que estúpido se não sabe que a infelicidade dos outros é deles,
E não se cura de fora,
Porque sofrer não é ter falta de tinta
Ou o caixote não ter aros de ferro!

Haver injustiça é como haver morte.
Eu nunca daria um passo para alterar
Aquilo a que chamam a injustiça do mundo.
Mil passos que desse para isso
Eram só mil passos.
Aceito a injustiça como aceito uma pedra não ser redonda,
E um sobreiro não ter nascido pinheiro ou carvalho.

Cortei a laranja em duas, e as duas partes não podiam ficar iguais
Para qual fui injusto – eu, que as vou comer a ambas?

Tu, místico, vês uma significação em todas as cousas.
Para ti tudo tem um sentido velado.
Há uma cousa oculta em cada cousa que vês.
O que vês, vê-lo sempre para veres outra cousa.

Para mim, graças a ter olhos só para ver,
Eu vejo ausência de significação em todas as cousas;
Vejo-o e amo-me, porque ser uma cousa é não significar nada.
Ser uma cousa é não ser susceptível de interpretação.

quinta-feira, 8 de março de 2012

A duna - Autoria própria

Entre o
ócio e a ação
O fragmento de tempo
Em que o nada sucumbe
Ao algo que se desdobra
Noutra alguma coisa
Que se move doravante

Assim de parado para
O momento do movi-
mento, na busca de
uma outra latitude, u-
ma duna se desloca
e se coloca no ponto
de onde novamente
terá que se deslocar

Deixando atrás de si
uma ausência quan-
do pretendeu renun-
ciar à longitude que
sentia, dali fugiu ao
ouvir o sibilo do ven-
to que sempre a con-
duz do nada ao nada

Mas poderá mesmo ser
nada, se é ao menos
um nome, uma idéia,
se permanece sen-
do ausência, e é e-
lo entre ação
e ócio?

terça-feira, 6 de março de 2012

El abandonado - Pablo Neruda

No preguntó por ti ningún día, salido
de los dientes del alba, del estertor nacido,
no buscó tu coraza, tu piel, tu continente
para lavar tus pies, tu salud, tu destreza
un día de racimos indicados?
No nació para ti solo,
para ti sola, para ti la campana
con sus graves circuitos de primavera azul:
lo extenso de los gritos del mundo, el desarrollo
de los gérmenes fríos que tiemblan en la tierra, el silencio
de la nave en la noche, todo lo que vivió lleno de párpados
para desfallecer y derramar?
Te pregunto:
a nadie, a ti, a lo que eres, a tu pared, al viento
si en el agua del río ves a ti corriendo
una rosa magnánima de canto y transparencia,
o si en la desbocada primavera agredida
por el primer temblor de las cuerdas humanas
cuando canta el cuartel a la luz de la luna
invadiendo la sombra del cerezo salvaje,
no has visto la guitarra que te era destinada,
y la cadera ciega que quería besarte?

Yo no sé: yo sólo sufro de no saber quién eres
y de tener la sílaba guardada por tu boca,
de detener los días más altos y enterrarlos
en el bosque, bajo las hojas ásperas y mojadas,
a veces, resguardado bajo el ciclón, sacudido
por los más asustados árboles, por el pecho
horadado de las tierras profundas, entumecido
por los últimos clavos boreales, estoy
cavando más allá de los ojos humanos,
más allá de las uñas del tigre, lo que a mis brazos llega
para ser repartido más allá de los días glaciales.

Te busco, busco tu efigie entre las medallas
que el cielo gris modela y abandona,
no sé quién eres pero tanto te debo
que la tierra está llena de mi tesoro amargo.
Qué sal, qué geografía, qué piedra no levanta
su estandarte secreto de lo que resguardaba?
Qué hoja al caer no fue para mí un libro largo
de palabras por alguien dirigidas y amadas?
Bajo qué mueble oscuro no escondí los más dulces
suspiros enterrados que buscaban señales
y sílabas que a nadie pertenecieron?

Eres, eres tal vez, el hombre o la mujer
o la ternura que no descifró nada.
O tal vez no apretaste el firmamento oscuro
de los seres, la estrella palpitante, tal vez
al pisar no sabías que de la tierra ciega
emana el día ardiente de pasos que te buscan.

Pero nos hallaremos inermes, apretados
entre los dones mudos de la tierra final.

domingo, 4 de março de 2012

Revivescências - Parte II - Autoria própria

II

Vagarosamente, ele se ausentou
ia aos mesmos lugares
em horas parecidas

Não via sempre as mesmas coisas
mas os mesmos rostos
mas os rostos foram sumindo
outros rostos noutros rostos
outros rostos nos mesmos rostos
outras coisas nas mesmas coisas
foram vistas

O mesmo nunca noutro mundo
o mesmo modo noutro medo
a primeira ausência
e mais tarde
outro tarde antes cedo

A serenidade da lembrança
a aspereza de lembrar
uma salva de silêncios
pelo que não se saudou
no selo do seu tempo

sábado, 3 de março de 2012

A redenção - Antônio Patrício

A divina emoção que tu me deste,

Já m´a deu uma árvore ao poente...

Não é só teu encanto que te veste:

A seiva e o sangue rezam irmãmente.



Às vezes nuvens, mares, areais,

Dão-me mais sonho do que os olhos teus...

É como se eles fossem meus iguais,

Tendo nós todos fé no mesmo Deus...



Não será isto o instinto, a profecia,

De que desfeitos e transfigurados

Viveremos num só, numa harmonia?...



Sim, deve se: amor, sonho, emoção,

São esforços febris d´encarcerados

Para quem a Unidade é a redenção.

quinta-feira, 1 de março de 2012

Revivescências - Parte I - Autoria própria

I

Antes do sono
o pomo da noite
no poente de hoje

Nas espumas do escuro
uma infância renasce
no que se memora

Antes do passado-presente
diante das primeiras
primeiras vezes
diante do instante
do antes de antes

Antes que se fosse
explicado o mundo
ensinado o tudo
sentido o Danúbio
lamentado tudo
no desmentido mudo

No luxo do pouco
no léxico do simples
só, ri a criança
sorriso prenhe
de quem nada prevê

O gosto de chocolate
é o que resta
da lembrança que revive
como vagarosa ausência

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Como Cristo - Antônio Patrício

“Tomai e comei: isto é o meu corpo,
“Tomai e bebei: isto é o meu sangue”

A lua abriu as veias... Preamar!
E tu mesmo está branca como a altura...
A tua carne agora está a sonhar
Contra o meu peito, cheia de doçura.

És doce como a noite, e ao vê-la cuido
Que é o céu uma grande nebulosa
Onde o sêmen lunar escorre fluido
Pela carne da noite — dolorosa...

“Sou toda tua, amor... Já não existo...
Seja sempre o meu corpo o teu pomar;
Bebe o meu sangue e bebe o meu olhar...”

Eu ouço a tua voz e lembro o Cristo,
As palavras que disse em certa Ceia
A uns homens que o seguiram na Judeia...

domingo, 26 de fevereiro de 2012

sábado, 25 de fevereiro de 2012

Se eu morresse amanhã - Álvares de Azevedo

Se eu morresse amanhã, viria ao menos
Fechar meus olhos minha triste irmã;
Minha mãe de saudades morreria
Se eu morresse amanhã!

Quanta glória pressinto em meu futuro!
Que aurora de porvir e que manhã!
Eu perdera chorando essas coroas
Se eu morresse amanhã!

Que sol! que céu azul! que doce n'alva
Acorda a natureza mais louçã!
Não me batera tanto amor no peito
Se eu morresse amanhã!

Mas essa dor da vida que devora
A ânsia de glória, o dolorido afã...
A dor no peito emudecera ao menos
Se eu morresse amanhã!

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Tristeza - Autoria própria

A água desaba da cachoeira
Os olhos não veem as estrelas
O caminho é trilhado por seus pés
Conquanto o chão não seja tocado

A água desaba da cachoeira
A liberdade, velha tirana, domina o caminho
O chão queima-lhe os pés
Arde em seu ventre castigo que lá não cabe

A água desaba da cachoeira
As palavras relutam em lhe obedecer
O espelho nada retrata
E agora, vai José
Consolar-se na dor de outrem
Porque nada é mais humano que a dor
Na natureza, nada se cria,
Apenas o sofrimento transforma
O exílio do bem-aventurado é como moeda
Seu tesouro e seu carrasco

Ninguém é mais liberto que o escravo
A cela é a paladina da liberdade
Senhor, não permita que eu veja
O caminho que por meu pés é trilhado

A água ainda cai da cachoeira
Até quando?

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

To be or not to be - Shakespeare - Tradução de Machado de Assis

SER OU NÃO SER, eis a questão. Acaso
É mais nobre a cerviz curvar aos glopes
Da ultrajosa fortuna, ou já lutando
Extenso mar vencer de acerbos males?
Morrer, dormir, não mais. E um sono apenas
Que as angústias extingue e à carne a herança
Da nossa dor eternamente acaba
Sim, cabe ao homem suspirar por ele.
Ai, eis a dúvida. AO perpétuo sono,
Quando o lodo mortal, despido houvermos,
Que sonhos hão de vir? Pesá-lo cumpre.
Essa a razão que os lutuosos dias
Alonga do infortúnio. Quem do tempo
Sofrer quisera ultrajes e castigos,
Injúrias da opressão, baldões do orgulho,
Do mal prezado amor choradas mágoas,
Das leis a inércia, dos mandões a afronta,
E o vão desdém que de rasteiras almas
O paciente mérito recebe.
Quem, se na ponta da despida lâmina
Lhe acenara o descanso? Quem o peso
De uma vida de enfados e misérias
Quereria gemer, se não sentira
Terror de alguma não sabida cousa
Qe aguarda o homem para lá da morte,
Esse eterno país misterioso
Donde um viajor sequer há regressado?
Este só pensamento enleia o homem;
Este nos leva a suportar as dores
Já sabidas de nós, em vez de abrirmos
Caminho aos males que o futuro esconde;
E a todos acovarda a consciência.
Assim da reflexão à luz mortiça
A viva cor da decisão desmaia;
E o firme, essencial cometimento,
Que esta ideia abalou, desvia o curso,
Perde-se, até de ação perder o nome.

domingo, 19 de fevereiro de 2012

O poeta e o enxadrista - Autoria própria

O poeta sente
O enxadrista pressente

O poeta confessa
O enxadrista calcula

O poeta se entrega
O enxadrista esmaga

O poeta é ingênuo
O enxadrista é gênio

O poeta procura seu caminho
O enxadrista asfalta o destino

O mais ingênuo dos poetas
Nunca será ludibriado por uma máquina

sábado, 18 de fevereiro de 2012

Lisbon revisited (1923) - Fernando Pessoa (Álvaro de Campos)

NÃO: Não quero nada.
Já disse que não quero nada.

Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer.

Não me tragam estéticas!
Não me falem em moral!

Tirem-me daqui a metafísica!
Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas
Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) —
Das ciências, das artes, da civilização moderna!

Que mal fiz eu aos deuses todos?

Se têm a verdade, guardem-na!

Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.
Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo.
Com todo o direito a sê-lo, ouviram?

Não me macem, por amor de Deus!

Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?
Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciência!
Vão para o diabo sem mim,
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
Para que havemos de ir juntos?

Não me peguem no braço!
Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho.
Já disse que sou sozinho!
Ah, que maçada quererem que eu seja da companhia!

Ó céu azul — o mesmo da minha infância —
Eterna verdade vazia e perfeita!
Ó macio Tejo ancestral e mudo,
Pequena verdade onde o céu se reflete!
Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!
Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.

Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo...
E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

A faísca - Autoria própria

Ainda que ficasse cada instante que passa
Não passaria um instante que em mim ficasse

Ainda que se cessasse todo o movimento do mundo
Não haveria imobilidade que me aquietasse

Se de todo tempo um tempo me fosse dado
Se de todo tempo a um só tempo eu fosse atado
Nesse remoinho do mesmo, faria a forja da fuga
Na direção de todo oposto
Ao contrário de toda aposta

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Soneto de amor - José Régio

Não me peças palavras, nem baladas,
Nem expressões, nem alma...Abre-me o seio,
Deixa cair as pálpebras pesadas,
E entre os seios me apertes sem receio.

Na tua boca sob a minha, ao meio,
Nossas línguas se busquem, desvairadas...
E que os meus flancos nus vibrem no enleio
Das tuas pernas ágeis e delgadas.

E em duas bocas uma língua..., - unidos,
Nós trocaremos beijos e gemidos,
Sentindo o nosso sangue misturar-se.

Depois... - abre os teus olhos, minha amada!
Enterra-os bem nos meus; não digas nada...
Deixa a Vida exprimir-se sem disfarce!

domingo, 12 de fevereiro de 2012

Esperança - Autoria própria

Como conter a ária de um tormento
No dique da rotina?

Como, se na aridez de cada momento
Há uma matilha de suplícios?

Essa insignificância que tudo ocupa
Preocupa e cala enquanto grita
Achega e foge enquanto me chama
Clama mas cansa, antes do começo do começo
Daquilo que não se alcança

sábado, 11 de fevereiro de 2012

Cântigo negro - José Régio

"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

A metamorfose da pedra - Autoria própria

De repente brotou da pedra
Uma beleza que não era dela
Uma suavidade que se chocava
Com a aspereza de sua superfície
Uma leveza que deslizava
Num arremesso que não machucaria
A pedra desprezada
Era bela, era fera
Foi feita pedra
Petrificada num poema
Apedrejou quem dantes afagava
E depois se arrependeu
Penosa, asfaltou
O caminho do agredido
Pois a pedra não se arremessou
Era pedra, no seu coração
Não penetrava a maldade

A pedra, de uma pedreira
Pedregosa
Não é dengosa, mas resiste
Não se ilude, não engana
É dura, e insiste
Testemunha a verdade
Ainda que pesarosa

Foi pedra, era pedra
É pedra, mas quiçá,
Num futuro não distante
Não será um diamante?

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Enquanto quis Fortuna que tivesse - Camões

Enquanto quis Fortuna que tivesse
Esperança de algum contentamento,
O gosto de um suave pensamento
Me fez que seus versos escrevesse.

Porém, temendo Amor que aviso desse
Minha escritura a algum juízo isento,
Escureceu-me o engenho co tormento,
Para que seus enganos não dissesse.

Ó vós que Amor obriga a ser sujeitos
A diversas vontades! Quando lerdes
Num breve livro casos tão diversos,

Verdades puras são, e não defeitos...
E sabei que, segundo o amor tiverdes,
Tereis o entendimento de meus versos!

domingo, 5 de fevereiro de 2012

In vino veritas - Autoria própria

(Antes do remoinho, a fé
Teve sua última véspera
O futuro resistia à fatalidade)

No cálice, o sabor
Acre que renova
A felicidade que se extingue

Na face, a farsa
Que tece uma mentira
Na tensão duma lembrança

Na boca, a palavra
Que se apaga
Na preamar de um riso

Na tez, embriaguez
Correnteza que se faz verbo
No ocaso da verdade

No relógio, crepúsculo e aurora
Do agora que é sempre
Do nunca que é agora

sábado, 4 de fevereiro de 2012

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades - Luís Vaz de Camões

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança:
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.

Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo da esperança:
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem (se algum houve) as saudades.

O tempo cobre o chão de verde manto,
Que já coberto foi de neve fria,
E em mim converte em choro o doce canto.

E afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto,
Que não se muda já como soía.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Momentos - Autoria própria

A ruga sutura o hoje ao ontem
O retrato segura o passado e não solta
A surpresa separa o antes do agora
A esperança é o presente em crescente agonia
O sereno sugere a alvorada...
Enquanto acontece o anoitecer

terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Tabacaria - Fernando Pessoa (Álvaro de Campos)

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.


Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.


Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.


Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.


Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?


Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Gênio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chava, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.


(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)


Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.


(Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)


Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente


Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.


Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.


Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o deconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,


Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.


Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.


Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.


Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.


(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.

domingo, 29 de janeiro de 2012

A moça e o pasteleiro - Autoria própria

- O que você quer?
Um pastel e uma cerveja?
Um beijo ou um poema?
Um ensejo e um tema?
Um gracejo ou um problema?
Meu desejo ou um cinema?
Uma declaração ou um dilema?
Uma paixão ou um tesão?
Um relance e uma transa, ou
Um romance e um transe?

A moça surpresa
As perguntas imprevistas...
A dúvida é mais obscena que a nudez

- Não sei o que quero
Se comer ou beber
Desistir ou prosseguir
Ceder e relaxar
Negar e lamentar
Querer e não tentar ou
Querer e arriscar
Dentre tantas opções
Prefiro um pastel

sábado, 28 de janeiro de 2012

Soneto XXXIII – Antônio Ferreira

Eu vi em vossos olhos novo lume,
qu’apartando dos meus a névoa escura,
viram outra escondida formosura,
fora da sorte, e do geral costume.

Em vão seu arco Amor armar presume,
que esse alto esp´rito, essa constância dura,
a outro mais alto Amor guarda a fé pura,
em mais divino fogo se consume.

Nesta desconfiança inda s’acende
em mim um vão desejo de aprazer-vos,
e para isso só busco engenho, e arte.

Senhora, que al fará quem chega a ver-vos,
(já que o desejo a mais se não estende)
que dar-vos de su’alma toda parte?

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Esfinge - Autoria própria

Já passei da fase
E da frase
Óbvia de quem vive
Soluçando soluções

Já me atiraram provas
Frascos e afrontas
E respostas prontas
Contra a minha
Caosmologia

Todo o logos
E todo lugar
Ao longe
Só aponta
O fel
Muito distante da
Colmeia do melhor mel

Queria viver
Dentro duma
Concha de sossegos
Sem precisar de
Antídotos para
Arrependimentos

Quero esquecer
Pedra a pedra
As dores do que aprendi

Quero refazer
Pétala a pétala
As cores do que desaprendi

Como quem cose
ponto a ponto
O próprio vestuário

Como quem cospe
grão a grão
A abóboda de todo um cosmo

Renascer
Como a uva reencarnada em
Vinho
E embriaguez

Mas só há
Só vejo
A conformação
silêncio a silêncio
O lento desabrochar
duma
esfinge

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Meu ser evaporei na lida insana - Bocage

Meu ser evaporei na lida insana

Do tropel de paixões, que me arrastava;

Ah! Cego eu cria, ah! mísero eu sonhava

Em mim quase imortal a essência humana:



De que inúmeros sóis a mente ufana

Existência falaz me não dourava!

Mas eis sucumbe Natureza escrava

Ao mal, que a vida em sua origem dana.



Prazeres, sócios meus, e meus tiranos!

Esta alma, que sedenta em si não coube,

No abismo vos sumiu dos desenganos:



Deus, oh Deus!... Quando a morte à luz me roube

Ganhe um momento o que perderam anos,

Saiba morrer o que viver não soube.

domingo, 22 de janeiro de 2012

O galo e as estrelas - Autoria própria

Há mais noite no agreste que em cidades
Próxima está a lonjura das estrelas
Na urbe, as estrelas são frivolidades
Pode-se no sertão de fato vê-las

Perto do mato vivem as verdades
Longe dos homens o homem sai das celas
Há na luz das estrelas potestades
Todo brilho do escuro é forte nelas

Acorda galo! Aclara o breu no grito
Acolhe o dia no acorde do teu canto
Acode a aurora desse outro amanhã

Teu fardo está na glória desse rito
Só o teu canto vê o mais íntimo espanto
A anatomia secreta da manhã

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Floriram por engano as rosas bravas - Camilo Pessanha

Floriram por engano as rosas bravas
No Inverno: veio o vento desfolhá-las...
Em que cismas, meu bem? Porque me calas
As vozes com que há pouco me enganavas?

Castelos doidos! Tão cedo caístes!...
Onde vamos, alheio o pensamento,
De mãos dadas? Teus olhos, que num momento
Perscrutaram nos meus, como vão tristes!

E sobre nós cai nupcial a neve,
Surda, em triunfo, pétalas, de leve
Juncando o chão, na acrópole de gelos...

Em redor do teu vulto é como um véu!
Quem as esparze --- quanta flor! --- do céu,
Sobre nós dois, sobre os nossos cabelos?

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Urbe - Autoria própria

Na urbe, uma nave segue sem ter prumo
Há o pranto pelo prato que se escassa
O acento falto em frágil argamassa
E a fome que se espanta pelo fumo

Selva de homens, sua seiva é o sangue. Sumo
Retrato da vileza das suas praças
Na passarela, raças em desgraça
Congraçam-se na ausência de algum rumo

Trabalha a criança num sinal impuro
Em suas mãos, a metástase da flor
Infância abandonada em pleno alvor

O sorriso da vela infecta o escuro
Toda a fé que se expecta nesse instante
Busca a fé que se aspecta hoje distante

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Estátua - Camilo Pessanha

Cansei-me de tentar o teu segredo:

No teu olhar sem cor, --- frio escalpelo,

O meu olhar quebrei, a debatê-lo,

Como a onda na crista dum rochedo.



Segredo dessa alma e meu degredo

E minha obsessão! Para bebê-lo

Fui teu lábio oscular, num pesadelo,

Por noites de pavor, cheio de medo.



E o meu ósculo ardente, alucinado,

Esfriou sobre o mármore correcto

Desse entreaberto lábio gelado...



Desse lábio de mármore, discreto,

Severo como um túmulo fechado,

Sereno como um pélago quieto.

sábado, 14 de janeiro de 2012

Último soneto - Álvares de Azevedo

Já da noite o palor me cobre o rosto,
Nos lábios meus o alento desfalece,
Surda agonia o coração fenece,
E devora meu ser mortal desgosto!



Do leito, embalde num macio encosto,
Tento o sono reter!... Já esmorece
O corpo exausto que o repouso esquece...
Eis o estado em que a mágoa me tem posto!



O adeus, o teu adeus, minha saudade,
Fazem que insano do viver me prive
E tenha os olhos meus na escuridade.



Dá-me a esperança com que o ser mantive!
Volve ao amante os olhos, por piedade,
Olhos por quem viveu quem já não vive!

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Desfrute e glória - autoria própria

Se após a renhida luta
Ganho o almejado desfrute
Ressinto o fim da disputa
Sucumbo ainda que relute

Finda a dor, chegada à glória
O conseguido condói-me
Vejo esse oco de vitória
O nada no eco corrói-me

Mas a glória que não alcanço
O prêmio que não desfruto
Traz-me o desfrute do lanço
E faz-me distar do luto

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

Vagabundo - Álvares de Azevedo

Eat, drink, and love; what can the rest avail us?
BYRON. Don Juan.





Eu durmo e vivo ao sol como um cigano,
Fumando meu cigarro vaporoso;
Nas noites de verão namoro estrelas;
Sou pobre, sou mendigo e sou ditoso!



Ando roto, sem bolsos nem dinheiro;
Mas tenho na viola uma riqueza:
Canto à lua de noite serenatas,
E quem vive de amor não tem pobreza.



Não invejo ninguém, nem ouço a raiva
Nas cavernas do peito, sufocante,
Quando a noite na treva em mim se entornam
Os reflexos do baile fascinante.



Namoro e sou feliz nos seus amores
Sou garboso e rapaz... Uma criada
Abrasada de amor por um soneto
Já um beijo me deu subindo a escada...



Oito dias lá vão que ando cismado
Na donzela que ali defronte mora.
Ela ao ver-me sorri tão docemente!
Desconfio que a moça me namora!...



Tenho meu por meu palácio as longas ruas;
Passeio a gosto e durmo sem temores;
Quando bebo, sou rei como um poeta,
E o vinho faz sonhar com os amores.



O degrau das igrejas é meu trono,
Minha pátria é o vento que respiro,
Minha mãe é a lua macilenta,
E a preguiça a mulher por quem suspiro.



Escrevo na parede as minhas rimas,
De painéis a carvão adorno a rua;
Como as aves do céu e as flores puras
Abro meu peito ao sol e durmo à lua.



Sinto-me um coração de lazzaroni;
Sou filho do calor, odeio o frio,
Não creio no diabo nem nos santos...
Rezo a Nossa Senhora e sou vadio!



Ora, se por aí alguma bela
Bem doirada e amante da preguiça
Quiser a nívea mão se unir à minha,
Há de achar-me na Sé, domingo, à Missa

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Consciência Cósmica - João Guimarães Rosa

Já não preciso de rir.
Os dedos longos do medo
largaram minha fronte.
E as vagas do sofrimento me arrastaram
para o centro do remoinho da grande força,
que agora flui, feroz, dentro e fora de mim...

Já não tenho medo de escalar os cimos
onde o ar limpo e fino pesa para fora,
e nem deixar escorrer a força dos meus músculos,
e deitar-me na lama, o pensamento opiado...

Deixo que o inevitável dance, ao meu redor,
a dança das espadas de todos os momentos.
e deveria rir, se me retasse o riso,
das tormentas que poupam as furnas da minha alma,
dos desastres que erraram o alvo do meu corpo...

domingo, 8 de janeiro de 2012

Luar - João Guimarães Rosa

De brejo em brejo,
os sapos avisam:
--A lua surgiu!...

No alto da noite as estrelinhas piscam,
puxando fios,
e dançam nos fios
cachos de poetas.

A lua madura
Rola,desprendida,
por entre os musgos
das nuvens brancas...
Quem a colheu,
quem a arrancou
do caule longo
da via-láctea?...

Desliza solta...

Se lhe estenderes
tuas mãos brancas,
ela cairá...

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Árias e Canções - Alphonsus de Guimaraens

A suave castelã das horas mortas
Assoma à torre do castelo. As portas,

Que o rubro ocaso em onda ensangüentara,
Brilham do luar à luz celeste e clara.

Como em órbitas de fatias caveiras
Olhos que fossem de defuntas freiras,

Os astros morrem pelo céu pressago...
São como círios a tombar num lago.

E o céu, diante de mim, todo escurece...
E eu que nem sei de cor uma só prece!

Pobre alma, que me queres, que me queres?
São assim todas, todas as mulheres.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Paternidade - Autoria própria

Pouco já resta, logo vem meu anjinho
Eu vejo pronto o berço onde estaria
Corpo indefeso, rosto no soninho
Flor adornada, feliz gritaria!

Visão que novo mundo descortina
não são verdes, esta cor é castanho
a mágica lembrança que fascina
volto a morar no castelo de antanho

Ressoa o sino da Capela Sistina
A alegria se expandindo com ardor
Deste ouro que não se pesa por quilo

A imaginação no transe atina
É médico? Quem sabe jogador?
O que será meu querido pupilo?

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Soneto - Alphonsus de Guimaraens

Encontrei-te. Era o mês... Que importa o mês? Agosto,
Setembro, outubro, maio, abril, janeiro ou março,
Brilhasse o luar que importa? ou fosse o sol já posto,
No teu olhar todo o meu sonho andava esparso.

Que saudades de amor na aurora do teu rosto!
Que horizonte de fé, no olhar tranqüilo e garço!
Nunca mais me lembrei se era no mês de agosto,
Setembro, outubro, abril, maio, janeiro, ou março.

Encontrei-te. Depois... depois tudo se some
Desfaz-se o teu olhar em nuvens de ouro e poeira.
Era o dia... Que importa o dia, um simples nome?

Ou sábado sem luz, domingo sem conforto,
Segunda, terça ou quarta, ou quinta ou sexta-feira,
Brilhasse o sol que importa? ou fosse o luar já morto?

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

O vento - Autoria própria

Uiva o vento, a janela se abre
E passa o vento, que traz o tempo

É no uivo que se escuta
O que apenas se imagina

De onde vem todo esse vento
O que foi que viu esta brisa?

Que mares ela conduziu?
Quantos grãos de areia desencaminhou?

A brisa segue com o vento
Num insolúvel matrimônio

Uiva um, geme a outra
Que vem solta, ninguém prende

E no vento veio a vida
Vem ventania e tempestade

Vem o verão, vem o inverno
Vem a gaivota, sem esforço

Passa o vento no cata-vento
Lambe o moinho no engenho

E ainda que, a destempo,
O vento traga a nuvem, traga a chuva
A água que vem com o vento
Alimenta o sertanejo
Molhando a seca
Não engorda mais
A fome

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Os dous horizontes - Machado de Assis

Dous horizontes fecham nossa vida:
Um horizonte – a saudade
De que não há de voltar;
Outro horizonte, - a esperança
Dos tempos que hão de chegar;
No presente, - sempre escuro, -
Vive a alma ambiciosa
Na ilusão voluptuosa
Do passado e do futuro.

Os doces brincos da infância
Sob as asas maternais,
O vôo das andorinhas,
A onda viva e os rosais;
O gozo do amor, sonhado
Num olhar profundo e ardente,
Tal e na hora presente
O horizonte do passado.

Que ambição de grandeza
Que no espírito calou,
Desejo de amor sincero
Que o coração não gozou;
Ou um viver calmo e puro
A alma convalescente,
Tal é na hora presente
O horizonte do futuro.

No breve correr dos dias
Sob o azul do céu – tais são
Limites no mar da vida:
Saudade ou aspiração;
Ao nosso espírito ardente,
Na avidez do bem sonhado,
Nunca o presente é passado,
Nunca o futuro é presente.

Que cismas homem? – Perdido
No mar das recordações,
Escuto um eco sentido
Das passadas ilusões.
Que buscas homem? – Procuro,
Através da imensidade,
Ler a doce realidade
Das ilusões do futuro.

Dous horizontes fecham a nossa vida.